Metsuke

Percepção visual é fundamental no combate com espadas, como já dizia o famoso termo aprendido em Kendo: ichi-gan, ni-soku, san-tan, shi-riki, ou seja, primeiro olhos, segundo pé, terceiro coragem e em quarto força.

Mas os orientais atribuem relações profundas e holísticas ao conceito de visão como debatido em #Bushi no Me, demonstrando o nível de refinamento na arte de combater, que transcende o mero uso da espada e é complementado por sofisticadas ampliações em nossa percepção, agindo quase como um “sexto sentido”, tornando os olhos mais do que uma porta de entrada para as reações físicas do adversário.

Ainda que necessário, é considerado um erro focar apenas nos olhos, braços ou outro local do corpo do oponente de maneira imediatista. Manter a visão “presa” em determinado ponto é bastante desvantajoso como nesta parábola: ao olhar para a esquerda, se esquece da direita, e ao se olhar para a direita, se esquece da esquerda. Como resultado, temos uma brecha imensa no local de desatenção. Como evitar isso?

Em Iaido, arte marcial que se treina centrada na percepção, estuda-se o termo KAN-KEN-no-METSUKE (観見の目付け), onde entendemos o KAN como ver as movimentações emocionais (portanto interiores) do adversário, de certa maneira “penetrando” em seus pensamentos e entendendo intuitivamente os sentimentos e assim, suas possíveis reações. A captação do KAN é assegurada pelo KEN.

KEN é ver literalmente o presente, o exterior e o conjunto da linguagem corporal de maneira crua e visceral. No entanto, é possível dizer que KEN é a “janela de entrada” de KAN uma vez que envia as informações primárias para a análise psicológica aprofundada, e assim criar a leitura emocional do adversário. Ao pressioná-lo, certamente haverá reações físicas bruscas ou sutis, como mudança de respiração, olhar, tensão nas mãos ou algum outro tipo de sinal (externo) relativo à ansiedade (confirmando o interno). Assim, é possível observar onde e como o oponente é mais forte, e assim evitar atacar esses pontos, visando suas aberturas e brechas.

Em Kendo, é ensinado o ENZAN – no – METSUKE (遠山の目付)- também conhecido por toyama-no-metsuke – onde se deve olhar de certa forma “atravessando” o adversário, não focando em detalhes de seu corpo: é como olhar na direção dele, mas visualizando o panorama como um todo. ENZAN no METSUKE significa “contemplar a montanha distante”. Também pode ser explicado por metáforas como olhar para a árvore sem perder a floresta como um todo, ajustando tanto visão central quanto periférica a este conceito. O fato de não focar em detalhes permite observar praticamente todo o corpo do adversário – e perceber quando inicia movimentos mesmo com os pés – criando possibilidade de reação.

Veja o caminho sem deixar de ver o todo.

Ver o caminho sem deixar de ver o todo.

Mesmo assim, é difícil lutar. KAN aplicado no combate permite perceber de forma consciente a oportunidade de atacar, mas ela provavelmente já não estará mais lá (as flutuações da luta são altamente variantes). É preciso atacar no instante em que perceber o inicio da oportunidade, e isso não é nada fácil. De certa forma, é quase como saber a próxima palavra a ser cantada em uma música, por isso, o entendimento da letra é importante. Isso é treinado com a extensiva repetição dos golpes e dos waza, e da mesma forma, nos acostumamos a detectar o início da oportunidade de atacar através do KAN.

Assim, o KAN é o treinamento do instinto, indo além da percepção básica dos sentidos, trazendo estímulos que são processados para uma reação inconsciente: o mushin, a movimentação oriunda do “não-pensar”.

KAN provavelmente é observado pelos examinadores em shinsa (exame) de altas graduações como o jogo de reação que os oponentes travam entre si: o timing de resposta de ataques deve ser praticamente instantâneo, demonstrando ciência do conceito de forma racional, ainda que talvez, reagindo de maneira inconsciente.

O KAN-KEN-no-METSUKE é um conceito que também auxilia a lidar melhor com as pessoas fora do dojo. Em aplicação semelhante ao combate, ajuda na percepção da intenção e nas decisões que podem melhorar as relações interpessoais, e conforme aprendemos a ver “com os olhos do coração”, isto vai se tornando uma parte muito preciosa de nós.

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6 comentários sobre “Metsuke

  1. Muito interessante o assunto e muito bem escrito. Obrigado

    • Olá André,

      Infelizmente texto algum pode dar a profundidade da vivência…. sei que é muito relativo contar o que é o conceito sem maiores explicações (soando até místico e fantástico demais), mas tem coisas que somente através da experiência é que se tornam mais claras. Obrigado pela visita!

  2. Ótimo texto – enriquecido ainda pelos vídeos bem selecionados.
    Percebo o quanto é profundo o estudo do kendo e correlatos. Iniciei há pouquíssimo tempo e não me atrevo a dizer mais do que uma ou duas palavras…
    O “Espírito Marcial” tem sido uma rica fonte de reflexões e aprendizados.
    Que perdure.

    • Olá Ignácio,

      Obrigado pela força! Sem dúvida o Kendo é um rico caminho onde desenvolveremos habilidades únicas – e não estou falando de manusear espadas! :)
      Existe uma vida inteira de aprendizado em mínimos detalhes que modificarão nosso modo de pensar. Creio este ser um grande presente e diferencial do Budo como um todo!

      Agradeço a visita e os elogios! :)

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