Quando começar um koryu de IAIDO?

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Uma dúvida recorrente aos mais ansiosos ingressantes no IAIDO, que se iniciaram em Seitei Iai: qual é o melhor momento para começar a treinar um koryu (os estilos/escolas clássicas)?

Sendo bastante honesto, isto não tem resposta certa. Não existe fórmula para definir qual é a melhor estratégia, embora comentários possam ser feitos para a realidade do ensino (e sua disponibilidade) no Brasil. Bem, a única resposta adequada sobre o assunto pode ser “quando o/a Sensei achar melhor”. Mas vamos as considerações!

O Seitei Iai foi formulado em 1969 pela Zen Nihon Kendo Renmei (ZNKR) – a Federação de Kendo do Japão, com a introdução de sete kata iniciais (que foram acrescidos, totalizando 12 atualmente) e objetivava, a princípio, resgatar o saque e manuseio da katana em seu real formato para praticantes de Kendo. Entretanto, sua difusão foi um caso de imenso sucesso, permitindo comunicação de praticantes entre escolas diferentes, e assim congregando pessoas em eventos e maiores discussões sobre a natureza do Iaido.

Junichi Kusama Sensei, 8º dan Hanshi e presidente da divisão de Iaido da ZNKR.

Mas muito antes do Seitei as escolas tradicionais já possuíam currículos voltados para educação fundamental do ingressante, onde os princípios da arte e do combate são revelados em doses pedagógicas e progressivas. Qualquer sistema de artes marciais possui elementos de aplicação gradativa, onde técnicas fundamentais carregam as bases do comportamento, mecânica e mentalidade. Assim, para aqueles que ainda estão engatinhando nos princípios do Seitei Iai, ter de absorver uma nova bagagem de conceitos fundamentais pode ser excessivo e confuso, ainda mais quando tais informações possam ser conflitantes.

Embora alguns instrutores possam discordar, o Seitei Iai possui características interessantes como forma de entrada no mundo do Iaido. Justamente por ser um “estilo híbrido” (com todas as aspas possíveis aqui, já que oficialmente NÃO é um estilo como se entende os koryu), tendo grandes familiaridades com o Kendo – em especial, movimentação de pés, entre outros detalhes – o que facilita para um expressivo contingente de praticantes oriundos desta arte ingressarem no Iai com menor impacto (afinal, era o objetivo inicial).  A metodologia de ensino, bem padronizada e delimitada é atraente e didática, e tem similaridades com o mindset do Kendo, uma arte profundamente solidificada em procedimentos de treino otimizados, com um ótimo coeficiente de evolução pessoal.

Outro ponto marcante é o fato do Seitei possuir um manual oficial que delimita o formato dos kata, onde sua “normatização” delineia um campo mais claro para absorção relativamente precisa dos movimentos. Qualquer ação fora deste contexto configura imediatamente erro, então age como uma fôrma que padroniza a técnica, e permite uma avaliação menos subjetiva. E também existe amplo material audiovisual (inclusive oficial) para se entender os pormenores das técnicas.

Noboru Ogura Sensei, 8º dan Hanshi, demonstra técnica em vídeo institucional da ZNKR.

Como elementos extracurriculares ao Seitei Iai, é possível que nos treinos sejam abordados conteúdos de Nippon Kendo Kata (10 kata, incluindo espada curta) e Bokuto ni Yoru Kendo Kihon Waza Keiko-Ho (9 técnicas de ataque/contra-ataque), desde que os instrutores sejam versados, e também devidamente federados e graduados em Kendo. Ainda que existam diferenças básicas de movimentação, funcionam como bom complemento ao praticante que estuda somente Iaido, onde poderá aplicar as rotinas com um parceiro reativo usando espadas de madeira (bokuto). Afinal, todos estes conteúdos são regidos pela mesma entidade e assim, são institucionalmente conectados; e estamos falando de, ao todo, 31 técnicas com a espada japonesa.

Enbu do “Bokuto Kihon”, com as senseis Takizawa e Hoshina, ambas 7º dan Kyoshi.

Alguns instrutores mais experientes podem ter opiniões distintas sobre “quando” um novato pode ser iniciado o koryu. Independente de sua idade, existe um bom senso em esperar que se absorva o essencial e a forma geral dos 12 kata do Seitei. Outros podem falar que a partir de ikkyu (aspirante) é possível, ou partir do 1º dan. Por outro lado, deixar para muito mais tarde desmotiva o praticante. Em algum ponto, é possível fazer um comparativo com a mente infantil, que em seus primeiros anos possui muito mais flexibilidade para aprender diferentes habilidades, e com o tempo, passamos a ter maior resistência a novos ensinamentos. Assim, esperar demais para aprender um koryu pode nos fazer engessar em um único sistema, e recalibrar esses vícios ao adentrar no novo é realmente trabalhoso – vide pessoas que treinam artes marciais paralelas que alegam usar espadas japonesas, e encontram grande dificuldade em se adaptar ao atual aprendizado.

Nos dojo que seguem as normas da ZNKR, é interessante que o Seitei Iai seja a porta de entrada para a arte marcial, uma vez que faz parte dos exames de graduação (e competições, eventos altamente motivadores para prática). Mas no Japão, é possível que se cobre formas koryu já nos exames para 1º dan (é realista pensar em chegar neste nível com no mínimo três anos de treino, apesar de recomendarmos mais), então existe a necessidade de introduzir mais rapidamente tal conhecimento.

No Brasil, essa demanda é diferente. No exames realizados até hoje pela Confederação Brasileira de Kendo (e seguindo normas da FIK/ZNKR), foram cobrados formas koryu somente para 4º dan e acima, em parte pela inexistência até poucos anos atrás de pessoas com essa graduação no país. Por este fator, posterga-se naturalmente o advento do aluno nos sistemas clássicos do Iai, visto que assim alguns instrutores tenham preferência por uma maturidade e experiência maiores antes da empreitada.

Por questões normativas, os exames de Iaido orquestrados pela FIK e All Japan Kendo Federation (AJKF – o mesmo que ZNKR) possuem as seguintes características:

*Retirado de STANDARD GUIDELINE FOR DAN/KYU EXAMINATION – FIK

Examination Subjects and Methods

Artigo 18:

– De 1º até 5º dan são cobrados exame prático (execução dos kata e etiqueta) e exame teórico (escrito);

– 6º e 7º dan: somente exame prático

*neste guia em inglês não fala mas é sabido que 8º dan é cobrado somente exame prático;

Artigo19:

1. Quantidade de formas requisitadas segundo descrição abaixo. Os kata obrigatórios da AJKF são designados pela comissão do exame de graduação no dia. As formas em koryu não são ditadas pela comissão, ficando a escolha do/a candidato/a;

– Exame prático para 1º até 5º dan: cinco kata da AJKF (pode ser incluído uma forma de koryu), executados no máximo em seis minutos; [incluindo as saudações iniciais e finais];

– 6º e 7º dan:  seis kata da AJKF (podem ser incluídas duas formas de koryu), executados no máximo em sete minutos [incluindo as saudações iniciais e finais];

*neste guia em inglês não fala mas se sabe que para 8º dan é feito em duas fases: na primeira são cobrados seis kata da AJKF em seis minutos no máximo [incluindo as saudações iniciais e finais], e caso aprovado, na segunda são cobrados todos os 12 kata da AJKF executados no máximo em 12 minutos; observa-se aqui que não são pedidos os koryu.

2. Torei (os protocolos de saudação à espada e etiqueta) devem ser os usados no Iai da AJKF [cada koryu faz à sua maneira, sendo no Seitei um modelo padronizado pela Federação];

3. O tempo cronometrado do exame se inicia no momento em que o/a candidato/a executa saudação para shomen após adentrar área de exame, e termina quando passa a espada para a mão direita e realizar a saudação final;

4. A inclusão de koryu é determinada pela comissão organizadora [aqui vemos que em locais de pouca difusão de estilos clássicos, ou de escasso acesso a instrutores de linhagem comprovada pode ser preferível que não se execute tais formas nos exames].

Enbu – Senseis de 8º dan demonstram seus koryu.

Vamos fazer uma analogia ao aprendizado de idiomas. Um adulto já tem grandes obstáculos a superar para se tornar fluente em um novo, uma vez que já tem uma extensa experiência em seu idioma natal. Seu sotaque será carregado por anos e sem a devida prática e orientação, manterá vícios eternos. Em Iaido, quando se treina uma vertente, é importante que seja feito da maneira “pura”, por exemplo, quando se executa formas koryu, elas não podem ser contaminadas com os trejeitos ou timings do Seitei (e vice-versa). Imagine que em avaliações de idiomas, quando você fala um não pode em hipótese alguma confundir ou ter a pronúncia do outro. Piore o cenário para ilustrar essa dificuldade quando se aprende idiomas latinos como francês e espanhol simultaneamente, pois têm relativa proximidade e elementos comuns! Então, pense o quão pode ser difícil treinar Iai “sem sotaque”, quando executar formas, ao lembrar de alguém tentando falar “portunhol”.

Muitos instrutores usam o termo “virar a chavinha na cabeça” para que se treine adequadamente ou koryu, ou Seitei. Mas é inevitável que nos primeiros minutos (ou até horas de treino) alguns confundam técnicas e movimentos corporais, e dominar essa dificuldade é o grande desafio, e em parte, a satisfação do caminho! Tanto que é comum interromper o treinamento de koryu perto de datas de exames de graduação ou competições, para que a mente se habitue somente a uma das rotinas.

Atenção aos detalhes que só o/a Sensei pode passar.

Ainda assim, todo esse desafio está sujeito a dois fatores imprescindíveis: o primeiro é a disponibilidade de um/a Sensei REAL desta arte. Instrutores de alta graduação e versados em koryu legítimos são muito raros no Brasil, e acesso a eles fora dos meios online (em virtude da pandemia) pode ser um empecilho, ainda mais quando residem longe de você. Aqui precisa-se do cuidado redobrado para não cair nas mãos dos famigerados charlatães, suas promessas samuraicas e frasezinhas de autoajuda de rede social.

O segundo é a carga de treino imposta. Separar habilidades por graduação é algo comum, mas pode não ser o mais justo. Existem (raras!) pessoas com extensa carga horária, treinando várias vezes por semana e bem orientadas. Assim, ao término de um ou dois anos pode ter se desenvolvido bem mais do que colegas com menor tempo disponível para a atividade. Ainda que se pense que excessos de treino são potencialmente danosos ao corpo (ainda mais quando iniciamos em idade adulta mais avançada ou usando equipamento inadequado), o olhar cuidadoso dos instrutores nos detalhes dos movimentos e ênfases de força fazem toda a diferença em um treino que priorize qualidade acima de quantidade. Apesar que, realmente, sem a intensa repetição, é difícil descobrir os pormenores da técnica, e aí reside um ponto importantíssimo do Caminho por meio deste “autodescobrimento”.

Enfim, esperamos que este texto traga reflexão e questionamentos sobre o treinamento em conjunto do Seitei Iai e seu koryu. Se alinhar os pontos aqui observados: ter um/a Sensei verdadeiro, que estuda um koryu legítimo, afiliado em uma organização séria e reconhecida, se você tem uma carga de treino razoável e uma mente flexível para “virar a chavinha”, já está no caminho certo!

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N.P.P.

É preciso comentar que o Seitei Iai é uma formulação exclusiva da Federação Japonesa de Kendo, regulado por ela há mais de 50 anos, sendo sua propriedade inalienável. Pessoas não vinculadas a organizações representativas da ZNKR e FIK – Federação Internacional de Kendo – ou grupos informais de artes marciais paralelas que não instruídos por um/a Sensei devidamente ligado a tais instituições certamente estão treinando de forma irregular e sem as devidas instruções, atualizações e autorizações. Veja ao final desta matéria links que possam te direcionar a grupos que treinam e divulgam o VERDADEIRO Iaido no Brasil.

Para aqueles que treinam mas não tem um/a Sensei de koryu formalizado, o conselho é esperar a oportunidade de estar conectado a um/a. O Seitei Iai promove um fenômeno único em que, até certo ponto**, uma pessoa possa ser orientada por diversos instrutores independentes, uma vez que a arte é um “idioma universal” no mundo do Iai, mas quando se trata do estilo clássico, só “vale” aquilo que o instrutor oficial da sua linhagem ensina – e mesmo que seja o mesmo estilo, mas de outros instrutores, já existe contaminação e o que se faz lá não vale aqui. Rígido, não é?

** E por “até certo ponto”, é algo que deve ser considerado uma introdução. Somente a visão e instrução direta de um/a Sensei presente e formalizado é o que faz desenvolver nossa habilidade e conhecimento. Mesmo que o ensino e as técnicas sejam padronizadas, a experiência dos instrutores é decisiva para preencher lacunas e detalhes finos dos movimentos, timings e significados de certos procedimentos. O texto pode passar uma impressão de que o Seitei Iai é mais autônomo em relação ao koryu, mas a verdade é que somente o/a Sensei poderá transmitir detalhes de pormenores que os japoneses chamam de “sabor”, ou talvez no Brasil possamos falar “tempero”.

Sob certa ótica, delimitar a forma é o de menos, e os acréscimos de “tempero” é o que define quem é o iaidoka. Se todos praticam os mesmos kata, o que vai diferenciá-los? Para os olhos treinados de avaliadores, isso é claramente perceptível, a ponto da habilidade de um praticante poder dizer quem é seu instrutor! E artes marciais sérias sempre priorizaram a relação aluno-mestre como centro do aprendizado.

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Tem interesse em conhecer o VERDADEIRO Caminho da Espada?

Veja aqui links para informações sobre onde encontrar a academias que ensinam o VERDADEIRO Kendo e Iaido no nosso país!

#Academias de KENDO no Brasil

#Academias de IAIDO no Brasil

#Quanto Custa treinar KENDO no Brasil?

#Como é o Treino de Kendo?

#Guia para a Prática de Kendo

#Confederação Brasileira de Kendo

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Postado em 30 de abril de 2021.

2 comentários sobre “Quando começar um koryu de IAIDO?

  1. Muito oportuno este artigo. Seitei Iai e/ou Koryu é o dilema de todos nós que estamos no caminho do Iaido aqui no Brasil. A nossa grande dificuldade é a disponibilidade de Sensei, o que é muito desuniforme pelo Brasil a fora! O artigo ajuda bastante alguém pensar no assunto e se decidir.

    • Olá José,

      Sim, infelizmente existe uma grande limitação de instrutores REAIS disponíveis, e uma divulgação orgânica nas redes sociais, sem pressão ou malabarismos marketeiros. Como dizem, o que é verdadeiro é discreto e profundo, o falso precisa aparecer e é todo florido. Só torcemos para que interessados encontrem o caminho das verdadeiras artes, com verdadeiros instrutores!

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