A Influência do Iaido na Prática de Kendo, e Vice-versa

Muitos se perguntam se há vantagens, ou ainda, se é obrigatório para quem treina Kendo também se dedicar ao Iaido. Afinal, são artes marciais complexas que exigem grande compromisso, tempo, dedicação e esforço, e tentar seguir por dois caminhos é sem dúvida desafiador, tal qual levar dois cursos superiores juntos, mas pelo restante da vida. Imaginou?

Existe uma frase interessante em nosso meio: “Kendo e Iaido são como as duas rodas de uma carroça”. Seguir por ambos caminhos na verdade é percorrer um só, o da Espada. Embora existam diferenças técnicas e disparidades, é inegável que é possível encontrar complementação e maior contato com o legado cultural que representam, extraindo experiências comparativas para reflexão, conhecimento e aplicação em seus universos.

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Sob diversos pontos de vista, podemos analisar Kendo e Iaido como uma experiência Yin-Yang: conceito derivado da cultura chinesa, explora noções de dualidades que são complementares e que se equilibram. Homem e mulher, dia e noite, claro e escuro, Céu e Terra, vida e morte; e caracterizam suas facetas como partes indivisíveis da existência e percepção humana. Apesar da dicotomia desconstruída, nem todos veem o quanto as experiências de vida necessitam de mais faces e contextos para que seja devidamente percebidas e absorvidas, ao invés de fixar em um único ponto ou sistema isolado, como é mais comum. Talvez por influência de sermos seres de simetria bilateral, tentemos a polarizar elementos que deveriam agir em uníssono, levando a tendências ou comportamentos errôneos e às vezes nada construtivos.

Assim, para os que já estudam uma modalidade, qual o grau de influência prática que existe ao trazer os elementos de outra? É possível melhorar nossas habilidades em Kendo também treinando Iaido, e vice-versa?

O treinamento em Kendo se dá em três frentes distintas, que permitem a abordagem da esgrima japonesa. Kihon (fundamentos, movimentações corporais e execução das técnicas com a espada), kata (formas de ataque e contra ataque) e shiai (o combate em si). Pode-se dizer que em Iaido esses três pilares também existem, mas considerando o fato do shiai neste caso não ser feito como luta de contato, apenas apresentações simultâneas dos kata, mais evidenciadas em competições.

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De um ponto de vista “psicológico”, talvez seja possível ver a prática do Kendo como uma expressão exteriorizadora dos sentimentos, evocada no momento dos ataques intensos e da forte emissão do kiai, que conduz a agressividade necessária para a obtenção do ponto válido. No impacto real das armas e nas proteções, quando feito de modo seguro, conseguimos extravasar diversos acúmulos negativos do cotidiano. É comum ter uma grande sensação de leveza e bem estar ao término de uma sessão, incluído um ótimo cansaço e ganho de condicionamento físico. Com isso, se torna uma interessante ferramenta para aliviar tensões, de um modo seguro e divertido. Pessoas naturalmente tímidas ganham um benefício único ao colocar para fora angústias de maneira enérgica e explosiva.

Como contraponto, no caso do Iaido o princípio pode ser justamente oposto. Para uma prática ideal, busca-se o total domínio dos impulsos de ansiedade, pressa e impaciência, sem o qual o manuseio da espada se torna alta e notadamente falho. O controle das emoções é necessário para que não transpareça o menor sinal de perturbação em nossa postura e atitude, que são facilmente refletidas no manejo da katana. Há um termo muito famoso no Iai: “saya-no-uchi”, que é livremente traduzido como “a vitória está em manter a espada na bainha”. É uma analogia ao rigoroso controle e refreamento de impulsos, pensamentos, atitudes e palavras que possam ser prejudiciais à situação, ou que levem à um cenário de violência. Também de certa forma, pode se referir à ideia de “domar a fera interior”, o que acaba por influir potencialmente na atitude do praticante, nos tornando mais cuidadosos, e por consequência, mais polidos, pacientes e centrados. Pessoas muito ativas podem se beneficiar desta ocasião de “desacelerar” ao executar técnicas de maneira serena, e assim, cada vez mais precisa.

Desse modo, pode-se encarar o treinamento conjunto das modalidades como um “bombeamento de emoções”, onde haverá um momento de fluxo Yin – interiorizar, acalmar, concentrar, inspirar; e um momento do fluxo Yang – exteriorizar, explodir, expandir, expirar. Em ambos haverá a Espada. E mesmo dentro do Kendo (ou Iaido) haverá o tempo de concentrar e o de exteriorizar – isso não é exclusivo de uma única arte, apesar de soar uma característica abrangente em cada uma.

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Do ponto de vista técnico, e talvez o de maior interesse para os envolvidos, no caso do Kendo, como arte marcial de combate de contato, a presença do companheiro/adversário é um importante elemento para treinamento da percepção, intenção, indução, reação, além de noções de timing, distância, impacto da arma e choque corporal. O parceiro nunca será um coadjuvante passivo dentro da linguagem da luta, e aprender a sentir o contato tanto físico quanto mental do embate é essencial no aprendizado de artes marciais.

Em Iai não existe essa dinâmica de contato com um adversário. Particularmente na prática do Seitei Iai (onde não há formas em dupla com colisão de espadas como no Kendo Kata ou Tachiuchi no Kurai) é valoroso a percepção de como a lâmina tocaria o corpo adversário, e a que distância ele estaria. O Kendo promove um pouco dessa experiência com maior profundidade, apesar de não existir o ato real de cortar. Assim, o Iaidoka praticante de Kendo consegue um diferencial, pois é extremamente difícil projetar mentalmente o adversário imaginário (kasso teki) de um jeito convincente, tanto para si quanto para uma eventual banca avaliadora.

Ashi-sabaki e suburi: em Kendo são estudados em um volume absurdamente maior se comparado com a prática equivalente em Iai. Inicialmente, a musculatura se torna mais desenvolvida com tamanha repetição de movimentos (que devem ser observadas cuidadosamente pela/o Sensei, sem jamais fazer com pesos ou repetições demasiadas fora do dojo) e certamente que neste nível se desenvolve uma noção mais fluida e ágil de movimentação de pernas, contribuindo para melhor mobilidade nos kata de Iai, influenciando diretamente em como adentrar no espaço de ataque do adversário imaginário e toda uma coordenação mais suave e refinada dos membros inferiores, que ao invés de prejudicar maximiza a mecânica do corte. É notório que iniciantes em Iai encontram dificuldade no suri-ashi, então treinamentos complementares podem ser ministrados.

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Sobre Reiho: em Iai os rituais de reverência talvez possam ser vistos como mais exigentes. Seu estudo é intenso e lhe é dedicada especial atenção. Muitos dizem que só de olhar a forma do reiho do iaidoka é possível ter uma amostra preliminar de suas habilidades. Assim, o constante estudo da forma adentraria também na natureza do kendoka, que pode ter uma melhora em sua postura corporal geral, gestos, vestimenta, atitude e elegância em quadra (e fora dela, tomara), atributos muito valorizados em um kenshi de mais alto nível e benéficos para exames de graduação e competições;

– Manuseio da espada: para o kendoka acostumado ao shinai, empunhar a katana em seu real formato é bastante atrativo e fornece experiência pra discutir aspectos do kamae, furikaburi e tenouchi, entre outros. Se Kendo é de fato a arte da espada, é importante saber “importar” tais aspectos da arma real para o shinai, realçando o mesmo feeling para ambos casos, e enfatizar o efeito de “cortar”, mesmo com um artefato de bambu; e do mesmo modo que no Kendo se pratica o suburi muito mais intensivamente que no Iai, a leveza e coordenação do furikaburi deve ser observada ao se usar uma espada de metal, bem mais pesada que o shinai.

Os cortes em Iaido preveem movimentos complementares aos estudados no Kendo (que buscam atingir o inimigo em uma distância ideal, sempre cortando de cima para baixo, e com a parte mais afiada da lâmina, em um movimento que otimiza ao máximo a capacidade letal da arma e impulso do corpo). Existem golpes laterais e diagonais clássicos, estocadas em diferentes pontos e técnicas batendo com a empunhadura (ou mesmo bainha em alguns koryu). Apesar de alguns movimentos não influírem diretamente no shiai de Kendo, seu conhecimento amplia a visão das possibilidades da espada, e principalmente benéfica para a coordenação motora e para se empunhar com mais destreza e flexibilidade a katana, seja ela de bambu, madeira ou metal;

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– Postura corporal para executar os waza: em Iai se treina os kata com uma fidelidade absoluta ao seu conceito original. Não são admitidos “trejeitos”, modificações ou personalizações de como se executa um corte ou saque (ok, excetuando talvez os mestres de alta graduação, mas há razões), e nisso, se aproxima do kihon. No shiai de Kendo, devido própria dinâmica de lutar, nem sempre se consegue atacar com a postura corporal ideal (o TAI em ki-ken-tai), e é possível marcar um ippon com alguma tolerância neste sentido. Treinar Iai ajuda a condicionar a mente a estar mais dentro possível do kihon, mesmo em momentos de aperto e susto;

Metsuke: a habilidade do olhar é inevitavelmente treinada quando se há um parceiro que age e reage a estímulos. O kan-ken no metsuke estudado em tanto no Iaido quanto no Kendo tem vantagens perceptivas quando se treina com o parceiro reativo, permitindo se conectar de fato com as intenções dele, e assim, prever ou induzir ações pela leitura de seu estado mental/emocional e linguagem corporal.

Entretanto, o formato do treinamento solo dos kata em Iai comporta uma execução de golpes de maneira menos apressada ou tensa, e desse modo, direcionando o iaidoka para que realize suas técnicas cada vez mais precisas, com a mente em um estado mais sereno sem a influência de um terceiro que a abale ou apresse. Isso permite que se mantenha o olhar firme, mas sem expressar elementos agressivos que possam denunciar o momento de atacar como no Kendo. Embora tal efeito e princípio também exista no cotidiano do Kendo, é realmente difícil conjurar tal “calma” e “olhar neutro” durante uma luta enérgica;

– Sobre kata: O treinamento em Iaido se dá essencialmente em exercícios de base cortando, sacando, e se executando ativa e continuamente os kata, com excepcional cuidado em entender a mecânica do corpo, e a posição e comportamento do inimigo. Com o tempo, o controle da coordenação e a suavidade dos movimentos agregam firmeza e precisão, tornando os cortes cada vez mais efetivos e realistas. Isso pode ter profundo impacto no desempenho em que o kendoka realiza o Nippon Kendo Kata. Primeiramente, por todo cerimonial protocolar que existe nesta prática, e uma vez acostumado à dinâmica do cortar, seus movimentos são mais conscientes neste sentido. Isso tem muito valor quando se estuda o Kendo Kata mais a sério a ponto dele influenciar diretamente nossa habilidade de shiai, como é dito na frase “faça o kata como se estive lutando de verdade, e lute como se estivesse fazendo o kata”.

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– A (não) presença do colega de treino: componente enfatizado e determinante no treinamento em Kendo, quando se luta com um adversário físico ele obviamente ataca, e eventualmente atinge locais em que nossa percepção está oscilando, e assim, tal ataque mostra que tipo de franquezas possuímos, direcionando reflexão e aperfeiçoamento das estratégias e posturas. Em Iai isso já é mais relativo: Seitei Iai não possui formas em dupla, tampouco permite o franco combate de contato. Somente em estilos clássicos é que se possui exercícios de ataque e contra ataque (com bokuto) executados com um parceiro, e ainda assim, em uma coreografia fixa, como é pertinente aos kata.

Dessa maneira, a figura do kasso teki na prática, apesar de representar um inimigo atacando, também atua como uma versão de nossa própria tensão e ansiedade, uma metáfora do nosso “eu”. É comum, para as graduações iniciais, ao se fazer um kata, não reagir de modo coerente ao que o inimigo está fazendo, ou mesmo se posicionando, atacando antes, depois, em um local onde o adversário não estaria ou fora do seria o “alvo”. Esse ajuste entre o que ele faz e como reagimos é um importante componente do treinamento de Iaido, e não seria exagero dizer que ali você é seu próprio parceiro, que através da reflexão austera perceberá em si mesmo o que está faltando, e onde está errando. Qual das duas versões – o parceiro real ou imaginário – é o mais atuante para o crescimento de nossas habilidades já é uma opinião que deve ficar a cargo do praticante, mas vemos vantagem em conhecer ambos pontos de vista. E como complemento, embora o Caminho da Espada seja desbravado por nós mesmos, o/a Sensei tem papel fundamental nestes instantes de iluminação.

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– Sobre seme: fator fundamental do ataque, podemos, apenas para fins ilustrativos, dividir em dois momentos: a pressão de entrada, e quando o adversário realmente sente e quebra a própria postura. Em Kendo sua presença é mais facilmente sentida e estudada apesar da dificuldade em se dominar tal aspecto (afinal, golpeamos em imensa quantidade, e somos constantemente golpeados, sentindo “na pele” tal pressão). Em Iaido, sem a preocupação de “reagir a tempo” (no plano teórico do treino), se estuda uma profundidade interessante a aplicação de seme, assegurando elementos secundários valiosos como kigurai (imponência e um forte senso de confiança), nem sempre presentes ou possíveis de se inserir no golpe de Kendo, nos primeiros anos de prática.

Juntando-se tais faces, é possível que um kenshi que conjure tanto a calma, frieza e concentração típicas do iaidoka em um seme poderoso e centrado, mas que libere toda essa tensão acumulada em um golpe agressiva e realisticamente “letal”, como é de se esperar do kendoka competente. Ou não.

Nos demais pontos, é importante frisar que eles somente fazem sentido ou terão algum efeito real caso haja uma profunda preocupação e reflexão do praticante em busca dessas interfaces. Não é só porque está “dentro” da arte que nós conseguiremos extrair seus conceitos, sendo necessário uma compromissada e exaustiva “escavação”, tanto física quanto mental para compreensão maior e obtenção de algumas conclusões, que tenderão amadurecer com a passagem das graduações. E sempre, sempre converse com a/o Sensei.

Do ponto de vista social, treinar tanto Kendo quanto Iaido tem a ver com se conectar e criar laços com pessoas, mesmo que de maneiras distintas e seletivas. Essa diversidade de situações, às vezes amplas e genéricas, por outras específicas e intimistas permitem cultivar fatores como empatia, respeito, humildade ou até mesmo antipatia. Não podemos ser inocentes a ponto de achar que os estudantes destas modalidades sejam todas pessoas “elevadas”, quando na verdade, somos apenas pessoas. Independente disso, ao final, existe um consenso: treinar sozinho não tem a menor graça! E não importa a arte marcial, sempre teremos Biirudo!

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Seria impossível reunir em um único texto todas as características que possam influenciar o treinamento em ambas artes, além da limitada experiência do autor em compreender tais aspectos. Se você viu ou experimentou outros fatores interessantes, por favor não deixe de comentar para deixarmos registrados mais pontos de vista sobre a verdadeira espada japonesa!

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NPP

Se você é praticante de ambas vertentes pode ter um panorama maior dos princípios da espada, mas nem por isso nossa experiência será mais extensa, completa ou profunda que daqueles que treinam extensivamente apenas uma delas.

O conceito de “ryu” – fluxo em japonês – vem da ideia de que as experiências humanas são resultado de influências externas, aprendizados, acontecimentos e pessoas, e também estão em constante mudança e construção. Tal qual um rio que recebe águas de diversos afluentes, e se torna mais volumoso.

Entretanto, devemos ter cuidado com “bairrismos”, ou de buscarmos desculpas e argumentos para nos sentirmos especiais em relação aos outros. A SUA experiência é única, e deve cuidar e opinar somente dentro de SEU próprio treinamento. Valem discussões de familiaridade de movimentos e aconselhamentos, mas não de comparações fúteis e adolescentes ao estilo “o que/quem/qual é o melhor”. Trilhar o Caminho não é uma corrida, muito menos um circo ou passarela de vaidades.

Também não quer dizer que só praticando ambas artes se tornará um kenshi mais “poderoso” e que irá derrotar adversários fortes, ou que será o espadachim “preparado para o combate real”. Acredito que estar conectado a mais fontes legítimas de conhecimento cria uma interface única para tentar explorar tanto as técnicas como uma pequena fração do pensamento samurai, e que isso seja a motivação e a satisfação em si.

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Tem interesse em conhecer o VERDADEIRO Caminho da Espada?

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Postado em 25 de Fevereiro de 2021.

4 comentários sobre “A Influência do Iaido na Prática de Kendo, e Vice-versa

  1. Excelente texto. Muito bom mesmo.

  2. Esse texto aqui vale ouro, meu caro. Não tinha visto ainda, vou divulgar.

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