É difícil encontrar um argumento convincente que delimite com precisão a diferença entre esporte e Budo. Mesmo nas artes marciais, se o praticante tiver por objetivos vencer uma luta, podemos dizer que não há diferença significativa para o esporte.
Ainda que existam correntes de pensamento que direcionem o Budo como ênfase ‘interna’ do aperfeiçoamento pessoal, e o esporte como ‘externo’ (que vise aprimoramento de habilidades), ambos permitem vislumbrar visões de mundo construtivas na maturidade de suas carreiras. E o que mais se faz nas artes marciais é cultivar habilidades físicas que serão aplicadas, mesmo em simulação, em um contexto que objetiva a vitória.
Tendo isto em mente, o estudo os três primeiros kata do Kendo permitem uma aproximação do conceito idealizado do Budo. Em ippon-me e nihon-me, temos uma exibição mortal da perícia do espadachim, e segundo Nakayama Hakudo (mestre expoente que participou da elaboração do Dai Nippon Teikoku Kendo Kata), há três grandes componentes espirituais no Kendo Kata: Gi (retidão), Jin (compaixão/simpatia) e Yu (coragem/valor).
No 1º kata, existe a retidão de que ambos lutadores convictos assumem jodan, promovendo o teimoso embate de ‘correto contra correto’ e se sagrará vencedor aquele que demonstrar o desapego (sutemi-no-itto) e entendimento do shin-ki-ryoku-ichi (união da mente, espírito, força e técnica). Ao fim do embate, o zanshin do shidachi é penitente, mas impecável, por tomar a vida de uma pessoa que deverá, segundo crenças orientais, retornar em uma próxima encarnação com uma nova mentalidade. Essa sensação de pesar é a base da técnica usada em nihon-me.
Para o 2º kata, que se inicia em chuudan-no-kamae, é interessante saber que houve intenso debate sobre tal postura, antes de adotá-la oficialmente. O conceito de chuudan refere-se mais a um alinhamento por uma área central (como jodan sendo cima, e gedan sendo baixo) e ficou nebuloso quanto a seus detalhes, se apontava diretamente para o rosto, nariz, centro das sobrancelhas, garganta ou plexo solar. Atualmente a postura é percebida como sinônima de seigan, mas este apresenta detalhes complexos, em virtude do ideograma gan referir-se ao ‘olho’, mas também a ‘visão’ e seus componentes filosóficos de origem budista.
É justamente essa ‘visão’ que está atuando no nihon-me, pois se no primeiro houve um embate vigoroso que culminou na morte de uma pessoa, no segundo, a preferência pelo kote (antebraço) adversário denota a compaixão (jin) de não matar, mas eliminar a capacidade ofensiva do agressor, através de uma cármica resposta. É onde podemos perceber a transição do conceito de ‘jutsu’ para ‘do’.
Em termos técnicos, a golpe estudado no sanbon-me é o tsuki (estocada) mas de acordo com a movimentação do kata, ninguém é machucado. Ao assumirem a postura gedan, ambos se confrontam de maneira a testar as intenções, e ao reassumir a postura chuudan, uchidachi percebe a possibilidade de golpear e efetua uma estocada direcionada ao pulmão direito do shidachi.
Através da percepção de maai e oportunidade, o shidachi recua encobrindo a espada do atacante (irezuki) e retoma a linha central de ataque, surpreendendo o agressor e assim avança um passo contra-atacando também com uma estocada no plexo solar. Desta vez, é o agressor que se vê sem saída a não ser recuar, sendo que ao fazê-lo, shidachi avança mais um passo realizando uma segunda estocada, desta vez, ainda mais próxima. Acuado, resta ao uchidachi recuar para abrir espaço, mas shidachi entra em perseguição, mantendo a espada apontada para seu rosto, de maneira extremamente próxima. Agora, qualquer movimento do agressor inicial resultará em morte instantânea, pois este foi dominado de maneira audaciosa e elegante.
Em um breve momento de iluminação, a vida do uchidachi é poupada e este vislumbra uma espécie de ‘renascimento’, onde a força do adversário se provou suficiente para eliminá-lo a qualquer instante do combate, mas não o fez, escolhendo a virtude (yu) de nem mesmo tocar ou ferir para conter seu inimigo. Em tempos menos civilizados, seria logicamente justificável abater um agressor que visa sua vida mas a transição dos ideais do Budo se fortaleceram através das experiências de pessoas que viveram o inferno da guerra e do derramamento de sangue, e renegaram a possibilidade de matar novamente em prol da construção de ideais elevados, que mudariam o rumo das artes marciais japonesas.
Este kata ilustra a maturidade do praticante, que pode dominar seu ambiente através de iniciativas mais espirituais do que perícias físicas ousadas e exibicionistas.
É sabido que o conjunto dos três primeiros kata foi desenvolvido especialmente para transmitir esses conhecimentos, em especial pela conexão religiosa que se tem com as entidades divinas guerreiras, pois a própria espada é considerada uma herança dos deuses, e de seus ensinamentos de luta, que incluem as três posturas básicas: acima da cabeça, apontada para o inimigo ou com a ponta baixa, representando céu, homem e terra em simbolismos culturais específicos que não possuo conhecimento para detalhar adequadamente, mas que estão cristalizadas nas práticas físicas e esotéricas da espada japonesa.
Daí, o componente filosófico e educacional dos 3 primeiros kata possui simbolismos simples para absorção de praticantes jovens, um dos públicos-alvo da comissão que elaborou cuidadosamente a seleção de técnicas de diversas escolas, em um momento de expansão militarista e ultranacionalista da história japonesa.
Em última análise, o ippon-me representa o ápice das técnicas de matar (kenjutsu). Nihon-me já permeia a transição pata uma nova mentalidade e o sanbon-me, o verdadeiro caminho da espada e consolidação do ideal do Kendo.
Não deixe de conhecer também as matérias #Kendo Kata: conceitos 01 e #Kendo Kata: conceitos 02.
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Este texto é baseado em informações do livro Kendo Kata: Essence and Application, de Yoshihiko Inoue Sensei, 8º dan Hanshi.
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A reflexão proposta é extremamente válida de maneira a garantir que ao executá-los, tenha-se o entendimento pleno das razões por trás de cada um dos movimentos.
olá Edmilson,
Obrigado pela confiança, mas existem outros pontos dentro do kata que não estão listados nestas matérias. Não sou um conhecedor profundo e costumo dizer que só “risco a superfície” quando falo do assunto. Procure sempre pelos Senseis para tirar dúvidas, são eles o detentores do conhecimento. Também é interessante alguma leitura, recomendo o livro Kendo Kata: Essence and Application, de Yoshihiko Inoue Sensei (8º dan, falecido recentemente) para maiores detalhes. Novamente, agradeço a visita! :)