Uma Jornada de Vida – parte 02

Continuação do relato da kenshi Tábita Takayama, publicado neste link em 12/01/2024,

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Kansha e Ichigo-Ichie

Quando eu era criança, aprendi desde cedo uma frase: “dar sem lembrar, receber sem esquecer”.

Acho que por toda uma vida, sempre me acostumei a fazer mais pelos outros do que os outros faziam por mim. Mas como sempre segui a frase citada acima, a minha questão sempre foi focar em esquecer o que dou, e seguir em frente. Porque, na verdade, eu sempre me dediquei muito pelos outros, porque isso faz parte de mim e vendo de uma forma muito fria, eu faço porque eu quero. Eu acredito que quando alguém faz algo por nós não cria uma dívida, mas cria uma dádiva. 

Esse meu entendimento foi crucial no Japão, porque pela primeira vez em minha vida eu recebi muito mais do que eu dei. Quando você recebe uma ajuda, na grande maioria das vezes a pessoa não quer algo em troca, mas apenas o reconhecimento do seu entendimento que aquilo foi importante para você.

 

Tenugui que criei para presentear todas as pessoas que nos ajudaram em nossa estadia no Japão. O Kanji que está nele se lê “KANSHA” e uma tradução simples é
“gratidão”. O sensei na foto é Ishii sensei, 8° dan. Um dos principais nomes de Tokyo no que se refere ao ensino de Kata. 

Eu tinha muitos objetivos no Japão, um deles era ser aprovada no meu exame de 6° dan. Esse processo já mobilizou muitas pessoas. Desde o momento que me senti sozinha e sem chão, até o momento de quando eu virei para olhar para trás e já existia uma multidão.

No Japão a forma como se dá o pertencimento de uma academia é diferente, porque como eu descrevi, acima tudo, se dá pela dinâmica da competição saudável. As academias no Japão tem o mesmo problema que no Brasil. Tem muitas pessoas diferentes treinando juntas e sempre se costuma dar prioridade para as crianças. E as academias também escolhem os eventos que vão se mobilizar, como por exemplo, exames e competições mais importantes. No meu caso, eu fazia parte do dojo do meu bairro para competir nas competições oficiais e distritais, e em paralelo, fazia parte de grupos de Kendo

Existem muitos grupos de Kendo no Japão que focam em diversas coisas diferentes. Em Tokyo existem dois grupos de keiko muito conhecidos, um é chamado Kent, que foca em um keiko mais livre e onde pessoas de todas as graduações podem participar. Eu já fui em treinos que o tsuki (estocada ao pescoço) era proibido porque tinham pessoas com graduação mais baixa no meio do grupo, e isso começou a me moldar muito quanto ao conceito de não machucar o outro, o sofrimento virá por outra via. O outro grupo se chama Hagakurey, também é muito cheio e foca em Kendo competitivo. As pessoas se encontram para treinar focadas em se desafiar, se preparando para as diversas competições que ocorrem em Tokyo pelos distritos, empresas, federações esportivas e estudantis. Os grupos se tornaram tão grandes que hoje em dia o Hagakurey conta com quase 1000 pessoas e já realiza competições abertas onde até a China participa, e muitos estrangeiros que treinam também no Japão.

Os outros grupos que participei foi o Musashi Kenwakai, em que Ito sensei, 8° dan, me convidou para treinar. É um grupo de mulheres com idade em média de 40 anos e acima, e o foco é em kihon (fundamentos). Durante a semana, cada integrante do grupo também tem outros grupos. E outro grupo que eu fiz parte foi dos keikos femininos que foi o Miyogadani. É um grupo feminino que sempre conta com quase 10 senseis femininas 7° dan em todo treino. Além do meu grupo distrital, Alberto e eu brincávamos que era a “galera do bairro”.


Em resumo, eu treinei com diversas pessoas e participei de muitos grupos, e em todos eles eu não gostava de falar muito e preferia mostrar o meu Kendo.  Por um tempo, pela limitação da língua, e depois por eu ter pegado o costume de manter em silêncio.

Participação no Campeonato de Empresas, Samurai League.

Quando eu era jovem eu me deixei conquistar pelo pensamento de “no pain, no gain”, mas no fundo eu sabia que apesar desse sentimento me levar para frente, ele também tornava minha vida mais pesada. Treinando no “berço do Kendo” em sessões onde preferia me manter calada, aprendi também que as melhores coisas a serem ditas precisam de muito silêncio para ficarem prontas. Quando tive que fazer meus discursos de despedida, em todos os meus grupos muitas palavras se repetiam como “foi leve”, “foi harmonioso” e “foi divertido”. Eu aprendi acima de tudo em ter alegria em treinar Kendo.


Meu objetivo atual e principal é que as pessoas vejam o Kendo como a maioria das pessoas veem no Japão. Uma forma de poder compartilhar com outras pessoas um caminho de melhoramento humano através momentos intensos, onde duas pessoas entregam o seu melhor a cada momento. No meio da disputa, do medo ou da coragem e na busca de um golpe perfeito que só será dado com a superação de muitos sentimentos que cada um tem dentro de si. Ao mesmo tempo que é um caminho solitário, ele se faz acompanhado. 

Aprendi que o Kendo correto não machuca: ele é simples e leve. E sem o medo da dor física o que vem à tona é a dor espiritual e essa sempre será a mais difícil de superar e onde cada um deve buscar a melhor forma de progredir. E a cada pessoa que você encontra no caminho, a cada keiko realizado com um amigo ou um desconhecido é algo novo que será aprendido. Essa conexão sempre será intensa e única. Um encontro, um momento… 

Minha última despedida no Japão foi em Mie com uma família muito querida, os Toida. Amigos que com o passar dos longos anos foram se tornando parte de nós, como nós também parte deles. Amigos de Kendo, mas também amigos da vida. E é claro fizemos keiko onde festejamos nossas habilidades e demos risada de nossas fraquezas. Algo que sempre vou levar comigo é que quem vence não comemora, mas quem perde, pode comemorar por você. É estranho talvez ler isso, mas na prática é umas das coisas mais bonitas que desenvolvi dentro de mim.

Família Toida do núcleo de Fernando Toida (dir), atualmente 7° dan, sendo aprovado no Japão.

A última parada foi na casa de Fujiwara sensei para visitar sua família. Ele foi um forte sensei que treinou no Mie Kenjinkai no Brasil por muitos anos, e no tempo que esteve no país também ajudou muitas academias no Brasil a crescer. Ele sempre teve um sentimento muito forte de gratidão com a vida e a grande alegria em viver. Mas infelizmente uma tragédia o levou de nós, deixando esposa e uma filha muito jovem, Hana. Ela é muito forte e também leva a alegria de viver dentro de si como o pai, e é possível ver que como é isso que a leva seguir adiante apesar de algo tão trágico ter acontecido em sua vida. 

Antes de eu ser aprovada no meu exame de 6° dan eu visitei Fujiwara sensei para lhe perguntar se eu já estava pronta, porque eu ainda tinha muitas dúvidas. Após o Keiko que fizemos ele soltou sua risada alta e feliz, e me disse que eu estava pronta e que eu poderia confiar em mim com todas as forças, e que eu não hesitasse. Mas o que eu mais lembro desse encontro foi que eu quis ter esse encontro. Eu quis ter esse momento com pessoas queridas à minha volta mesmo ele morando muito longe de mim. Mal sabia eu que de um encontro e um momento seria um último encontro e um último momento. 

Ele sempre me faz lembrar sobre o exemplo. Kendo não se ensina, ele se mostra. Ele me mostrou e assim ele me ensinou. Quando você é forte, consequentemente você é gentil. O Kendo se aprende através de um treino árduo, mas é o Kendo que te ensina. O sensei tem que ser aquele que tem que te motivar pelo exemplo, pela gentileza ou somente pelas palavras. E para mim, com certeza, essa foi sua última lição dada a mim. 

Meu último keiko com Fujiwara sensei foi intenso e eu pude ver no fundo dos seus olhos os seus sentimentos eu pude também demonstrar os meus. Mal lembro dos golpes, apenas lembro da alegria que foi podermos estar juntos e poder crescer.           

Talvez um dos seus ensinamentos é que devemos nos doar sempre e que nunca será uma dívida, mas será uma dádiva. Ele treinava arduamente para o exame de 8° dan e todos diziam em sua província que ele iria conseguir. Ele sempre deu o seu melhor. Ele foi grande, nobre e brilhante. Ele se foi antes de concretizar seu sonho, mas lutou até o último dia por ele. Nesses encontros únicos é que começa a se entender como se faz o melhoramento humano e apesar de às vezes ser doloroso, ele também pode ser acolhedor. E saber ser grato por cada momento e por cada pessoa que passa em sua vida é lembrar que nada é possível sozinho. A nossa evolução sempre dependerá de encontros e momentos únicos. 

Entrada da casa de Fujiwara sensei.

Gaman

Após minha aprovação em exame, eu tinha algumas ambições como melhorar minha técnica na luta competitiva e melhorar meu kata. Competi muito no Japão e realmente, se eu não tivesse competido com muito entusiasmo, não teria tido toda a experiência que tenho hoje. Pude me consagrar campeã no campeonato do meu distrito, e ter muitas colocações em campeonatos importantes. Fui selecionada por dois anos seguidos para representar o meu distrito no Campeonato de Equipes distritais de Tokyo. Com meus resultados fui convidada pela revista Kendo Jidai Internacional a ser a única participante feminina a participar de um dos campeonatos mais famosos do Japão, o Samurai League

Campeã no 68° Campeonato Distrital de Bunkyo-ku, Tokyo – Japão

E também ganhei a oportunidade de treinar kata com um dos maiores nomes de Tokyo, Ishii senseidan. Os treinos eram realizados no Tokyo Budokan. Graças a isso Alberto e eu fomos convidados a abrir um campeonato oficial regional com apresentação de Kendo Kata.

Demonstração de Kendo Kata do 41º Campeonato de Kendô Infanto-Juvenil e Master de Bunkyo-ku, Tokyo, Japão.

Ishii sensei também treinou a mim e Alberto para o Campeonato de Kata de Tokyo onde tivemos conhecimento sobre o kata competitivo e que não basta apenas o conhecimento da técnica, mas também como você interpreta os movimentos e isso pode ser personalizado e transformado em uma performance onde você conta uma história. Esse mundo me maravilhou e me encanta até hoje.  

Eu gostaria de apenas contar as maravilhas do mundo do aprendizado, mas eu queria destacar um grande obstáculo que o Alberto e eu tivemos nessa trajetória. Éramos uma família solitária no Japão. Estávamos sem família para nos ajudar e para que nosso filho Diego tivesse direito a vaga na creche pública, eu tinha que trabalhar de forma integral, o que atrapalhou meus planos de poder estudar japonês. E eu também tinha mantido minhas funções voluntárias integrais na Confederação Brasileira de Kendo e Alberto trabalhava quase 12 horas por dia. 

De segunda a quinta-feira trabalhávamos duro e ficávamos na rotina familiar que era muito pesada e começamos a ter ataques de ansiedade porque toda sexta-feira começava nosso gasshuku pessoal (treino de concentração), pois nunca podíamos treinar juntos porque tínhamos que nos revezar para ficar com nosso filho. Até o final de domingo eram em torno de cinco treinos que cada um deveria realizar em diversas localidades. Só agradeço ao meu corpo que ele suportou 7 cafés diários por três anos (risos).

Não viajávamos para usar as economias para pagar as escolas extracurriculares e babá para quando tínhamos competições importantes. Por três anos nós respiramos trabalho, Kendo e nosso amado filho, mas há que admitir que isso nos consumiu de uma forma muito agressiva. 

Eu era uma mãe jovem e todas as minhas amigas eram japonesas, e eu escutava as histórias delas e eram tão pesadas e exaustivas como a minha. Comecei a ter uma grande admiração pela mulher japonesa. Eu não tinha coragem de reclamar do meu cansaço sendo que algumas às vezes tinham três filhos e faziam as mesmas coisas que eu. A cobrança é excessiva, principalmente com as mulheres, e sentir isso na pele talvez tenha sido uma das experiências mais intensas que tive. Mas teve um dia, quase no fim dos meus três anos que caí durante o treino por exaustão e por causa do calor. Todas me perguntaram o que eu tinha, mas eu disse que não teria coragem de reclamar para elas. Nunca vou esquecer que elas me abraçaram em conjunto e secaram minhas lágrimas e me disseram: “a gente promete que pra você que vai passar… a gente promete pra você, conte conosco”. Apesar das lágrimas correrem meu rosto eu voltei para o exercício de kakarigueiko suportando o insuportável com dignidade, mas porque estava sendo apoiada e do jeito delas, elas me consolaram. E muitas choraram comigo por lembrar do que passaram, mas estavam lá firme e forte treinando porque estavam se apoiando. 

No último ano no Japão recebi muitas pessoas queridas da minha família e do Kendo brasileiro que me deram ânimo para continuar treinando, mas o cansaço estava se acumulando. O que me fazia continuar era o carinho e a alegria de ver pessoas familiares e seus atos de carinho.

Pêras deliciosas enviadas de presente pela família Ohta em agradecimento por termos recebido os queridos irmãos Teruo e Katsu. Momentos muito bonitos que passamos juntos combinaram com essas pêras que o meu filho fez durar três dias (risos…) Momentos bons passam muito rápido, temos que sempre aproveitar cada um. 

Mas tudo valia a pena por momentos bonitos que proporcionamos a todos, e também que todos nos retribuíram com muito carinho, e também matando um pouco a saudade que tínhamos de casa. 

Após uma preparação árdua para o retorno ao Japão, eu mal desembarquei e já estávamos nos preparando para o Campeonato Latino Americano de Kendo onde eu fui chefe de delegação. Talvez minha habilidade de suportar até o limite não me deixava ver que eu estava suportando muito peso e finalmente meu corpo começou a reclamar. Durante o Campeonato Latino Americano nunca estive tão exausta em toda minha vida, mas apesar de tudo graças a minha experiência e tudo que eu vivi eu pude enxergar coisas que jamais enxerguei antes. E mesmo em uma situação extrema eu pude chegar o mais longe que eu pude usando apenas técnica e minha capacidade de dar meu melhor. Foi o campeonato que eu quase chorei de exaustão, mas foi um dos eventos que eu mais me diverti pela alegria de estar novamente em casa. 

Um dos momentos mais especiais além dos resultados maravilhosos que obtivemos no evento foi o convite direto para que Miwa Onaka e eu fizéssemos a demonstração de Kendo Kata na abertura do evento. Foi um momento muito especial e bonito que até esquecemos do peso que foi ser a primeira dupla feminina a abrir um Campeonato Latino Americano.

Foto com Nagamatsu Sensei, 8° dan. Convidado da FIK para a CLAK 2023.

Saudades

Após longos três anos eu finalmente posso dizer que estou exausta. Uma exaustão que nunca tive a chance de experimentar, mas valeu a pena e depois de tantas coisas entregues, eu me dou o direito de neste final de ano descansar e estar finalmente com minha família e poder ser grata a tudo que me aconteceu. 

O ano de 2024 será um ano desafiador porque fui convocada para o Campeonato Mundial que será realizado na Itália, e também porque Alberto e eu abriremos uma nova academia de Kendo em fevereiro. Colocaremos em prática tudo que aprendemos e por isso será um desafio imenso e gratificante. Será um lugar onde poderemos exercer a gratidão e nossa visão de querer melhorar o Kendo brasileiro. Com certeza será um lugar especial onde lembraremos a todo momento de todos aqueles que nos ajudaram até o presente momento. 

Às vezes me pergunto se estou realmente pronta para enfrentar um desafio tão grande, mas todas as inquietudes somem quando eu lembro do Fujiwara sensei me abraçando depois do nosso último keiko e me dizendo: “você está pronta”. 

Gambarimasu!

Apresentação de Nippon Kendo Kata no CLAK 2023 em Lima, Peru.

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A colunista convidada é Tábita Takayama (tabi.saez@gmail.com), 6º dan Renshi em Kendo, que pelo emocionante relato, dispensa apresentações.

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#Como é o Treino de Kendo?

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Postado em x de janeiro de 2023.

Texto nº 154


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