Entrevista: Nakakura Kiyoshi

…..Nota do tradutor: mais do que conselhos e ensinamentos dos mestres, esse tipo de entrevista cria um cenário do passado através do relato dos entrevistados e podemos perceber a riqueza das situações que moldaram a personalidade e a força dessas pessoas, dentro de um panorama histórico fascinante.  O cotidiano do treinamento e a figura mítica de grandes mestres se faz presente nas palavras nostálgicas de Nakakura Sensei.

…..Afirmo que não sou tradutor profissional e fiz adaptações que julguei necessárias para a compreensão do texto em nossa língua, sem ignorar o contexto técnico do Kendo e do idioma japonês. A entrevista em inglês pode ser visualizada no site Aikido Journal.

…..Esta é a primeira parte da entrevista, no qual ele relata o início de seu treinamento em Kendo. A segunda parte fala mais de seu relacionamento com Morihei Ueshiba, patrono do Aikido, que não será abordada aqui. Caso se interesse pela continuação, pode clicar aqui para ler em inglês.

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…..Esta entrevista é a primeira de duas partes com Kiyoshi Nakakura Sensei, 9 º dan Hanshi em Kendo e Iaido e um dos maiores espadachins do Japão. Nakakura Sensei foi entrevistado em 15 de Outubro e 23 de Dezembro de 1987 em sua residência na cidade de Higashi Murayama. Estava também presente o entrevistador desta primeira parte, Sr. Hideo Yamanaka, presidente da Nihon Shuppan Hoso Kigyo Company.

…..“Se você acredita que você não pode fazer algo, você não consegue! Se você condicionar sua mente para fazer algo, você conseguirá!” Um produto do estilo anterior a guerra de treinamento em Kendo, um dos maiores alunos do mestre da espada Hakudo Nakayama e ex-filho adotado de Morihei Ueshiba, aos 78 anos (em 1987) Nakakura Kiyoshi Sensei é um dos maiores mestres da espada do Japão.

Nakakura Kyoshi Sensei

Nakakura Sensei: meu avô pagou todas as despesas de minha educação. Minha mãe se tornou viúva aos 32 anos e passou por grandes dificuldades. O jardim de minha casa era uma continuação do de meu avô e cresci em sua casa até entrar para a escola fundamental.

Sr. Yamanaka: Foi por resultado de seu relacionamento com seu avô que você foi para o dojo (academia) de Kendo Daidokan?

Nakakura Sensei: Está correto. Meu avô tinha 50 anos na época e tinha acabado de se aposentar. Ele costumava criar mamushi (um tipo de cobra), quebrava seus ossos e as pendurava na parede para secar. Ele nos mandava comer e dizia que daria força. Então se espalhou o rumor que eu comia mamushi. Nós falávamos que nunca comeríamos essas coisas! (risadas), entretanto, meu avô insistia que tínhamos que comer para ganhar forças. Quando precisávamos pernoitar lá por algum motivo, meu avô fazia um pó de mamushi grelhada moída e dava um pouco para cada um de nós. Desse jeito, as outras crianças jamais saberiam que aquilo era mamushi, percebe? Meu avô dizia para tomá-lo após as refeições.

…..Isso é algo que aconteceu após eu vir para Tokyo. Às vezes quando escrevia uma carta para meu avô para informá-lo de que eu estava tendo uma luta, ele colocava “shochu” (uma bebida alcoólica barata) numa garrafa de licor e visitava todos os templos do vilarejo para rezar pelo desempenho de seu neto na luta. Às vezes eu mandava uma carta contando que a luta acabara, ele visitava novamente os todos os templos com outra garrafa de shochu para agradecer. O comportamento de meu avô me fez praticar com muita determinação. Eu costumava imaginar a face de meu avô enquanto vestia o men (capacete protetor do Kendo) antes de uma luta e aquilo realmente me animava.

Sr. Yamanaka: Seu avô era seu pai adotivo, no verdadeiro sentido da palavra, não era?

Nakakura Sensei: Está correto. Era Abril de 1927 quando deixei meu avô. Tinha 17 anos. Fui então para o dojo Daidokan, na prefeitura de Kagoshima. No início, meu avô disse que jamais iria permitir que eu fosse para o Daidokan. Meu irmão mais velho, que era professor, vinha todos os sábados para tentar convencê-lo mas ele ficava zangado e dizia que aquilo era inútil. Meu professor se chamava Nakahara e juntamente com meu irmão, tentaram convencer meu avô a permitir que eu fosse. Na terceira tentativa meu avô finalmente foi convencido. Ele estava preocupado com o fato de eu pretender viver de Kendo no futuro. Meu tio foi adotado pela família Yoshitome e meu irmão também o sucedeu. Meu avô disse a esse meu tio que visitasse o chefe de polícia na delegacia mais próxima e perguntasse se eu poderia me estabelecer como um Kendoka no futuro. Meu tio foi até lá e ouviu a resposta: “não posso dizer ou garantir nada sobre o futuro, mas creio que tudo dependerá apenas de seu sobrinho. Se ele se devotar ao Kendo a partir de agora e se graduar pelo menos 3º dan, ele será capaz de se estabelecer como Kendoka.” Isto convenceu meu avô. Quando estava de partida, meu avô me disse o seguinte: “você agora vai trabalhar duro para se tornar um Kendoka. Não volte para casa até se graduar no 3º dan”. Senti-me triste então. Era realmente muito difícil receber o 3º dan naqueles dias. Não haviam instrutores de Kendo com graduação dan nas escolas fundamentais de Kagoshima naquela época (por volta de 1922). Haviam apenas dois policiais que possuíam 2º dan e mais dois ou três 1º dan. Era extremamente difícil alcançar o 3º dan. Pouco antes de deixar o vilarejo, pessoas vieram se despedir de mim e me dar presentes, algo como 20 ou 30 sen em dinheiro (1 sen = 1/100 Yen) e todos me encorajaram.

…..O treinamento no dojo Daidokan era realmente muito severo. Acordávamos às 5 da manhã e corríamos para o dojo para treinar. Ficávamos exaustos após uma hora de treino. Pensava que, com esta experiência poderia me estabelecer em algum outro campo, mesmo se não tivesse sucesso como um Kendoka. Muitas vezes pensei em empacotar minhas coisas e apenas ir para casa. Contudo, quando me sentia assim, falava comigo mesmo para parar com isso. Lembrava-me de como insisti com meu avô para vir e do pessoal do vilarejo que veio se despedir de mim. Por esse motivo, resisti até o fim. Sem isso, poderia ter desistido e ido para casa.

…..Havia um instrutor de Kendo muito distinto no Daidokan chamado Kanehiro Maruta. Um dia, por um erro, eu pisei no shinai da pessoa ao lado e Maruta Sensei, que estava vendo, gritou meu nome: “Nakakura!” Imediatamente me desculpei pelo fato mas já era tarde demais. Maruta Sensei pediu para levar meu shinai até ele. Ele me golpeou tão forte que vi estrelas. O Sensei disse: “Para que raios serve o shinai?” O shinai é uma espada! Os antigos samurai cuidavam muito bem de suas espadas, tanto quanto de suas almas! Como você poderia pisar em um shinai, que representa uma espada de verdade? Alguém como você nunca será capaz de se tornar bom, não importa o quanto pratique ou por quanto tempo. Desista agora e vá para casa!” Normalmente, eu iria para casa, mas pelas razões que mencionei anteriormente, eu não pude. Então, implorei a ele para me perdoar dessa vez. Maruta Sensei disse: “Tudo bem. Então, desculpe-se sinceramente com o shinai por ter pisado nele, levante-o até acima da cabeça e fique assim lá no corredor!”

…..Eu fiquei parado com o shinai sobre a cabeça até a aula terminar. Então, voltei ao dormitório com os outros. Quando me olhei no espelho, vi galos enormes em todo topo da cabeça. Eu não chorei quando fui golpeado mas quando me vi no espelho eu realmente achei que iria embora e me perguntei se ainda continuaria treinando Kendo. Contudo, suprimi o desejo de ir desistir e ir embora. Ele era realmente um Sensei distinto. Ele também era um apreciador de bebida e bebia todas as noites com o chefe do Daidokan. Algumas vezes ele bebia até uma da madrugada. Um representante do dormitório nos contou que nosso instrutor ainda estava bebendo e não iria na manhã seguinte. Nós acreditamos nisso e achávamos que não iríamos treinar na manhã seguinte, o Sensei já estava de pé antes das cinco e nos esperava em posição de meditação zazen no dojo. Todos ficamos muito surpresos e corremos para o dojo (risadas). No dojo, os alunos deveria pendurar a placa com seu nome na parede, você saberia quem chegou antes e quem chegou depois. O atrasado quase era morto (risadas). Então tínhamos o kakarigeiko. Naqueles dias, esse tipo de treino era diferente do de hoje. Fazíamos por um ou dois minutos e era insuportavelmente árduo. Você ficaria cego. Mas mesmo nesta condição, continuávamos a golpear com força. No final, a parede do dojo estava praticamente destruída. Em uma ocasião Masayoshi Arikawa – que agora está em Oita- foi empurrado até o corredor.  Uma placa de madeira se quebrou quando ele caiu, ficando preso nela. Mesmo assim, o Sensei disse para atacá-lo e golpeá-lo na cabeça, abdome, braços – qualquer lugar! Ele estava entalado no chão e tivemos que puxá-lo de lá (risadas).

Sr. Yamanaka: Por quantos anos ficou no Daidokan?

Nakakura Sensei: Fiquei lá por dois anos. Treinávamos três vezes ao dia – manhã, tarde e noite – uma hora por treino. Quando você envelhece um pouco, esse tipo de treinamento é muito severo.

…..Após se graduar no Daidokan, fui ensinar Kendo no Daitosha Kogyo Office em Fukuoka, por recomendação de meu irmão mais velho. Eu fui para Fukuoka em Abril de 1929. Em novembro fomos a uma excursão para Tokyo. Foi assim que conheci Nakayama Hakudo Sensei.

…..O motivo de ir conhecer Nakayama Sensei é que Maruta Sensei me contou sobre ele na aula de ciências militares em Daidokan. Maruta Sensei viu Nakayama Sensei no Yubukai em Kyoto antes da guerra (Russo-Japonesa) e imaginou como ele poderia ser o melhor do Japão. Imaginou que golpearia uma vez e atacou Nakayama Sensei. Contudo, ele não conseguiu nem mesmo tocar em seu hakama. Maruta Sensei colidiu com Nakayama Sensei mas ele conseguiu defletir seu ataque, golpeou sua cabeça e o derrubou. Ouvimos falar que Nakayama Sensei era mesmo bom nesse sentido. O que é pior é que esta história foi contada pelo Maruta Sensei, que acreditávamos ser o mais forte instrutor do mundo. Eu estava muito curioso para saber como Nakayama Sensei era. Então, fugi da hospedaria onde estava alojado e fui visitá-lo. Quando encontrei com um de seus estudantes veteranos, ele me perguntou se eu possuía uma carta de apresentação. Quando mencionei que vinha de Kagoshima e meu instrutor era Maruta Sensei, fui aceito no dojo. Nakayama Sensei veio até mim e disse “você é o Sr. Nakakura. Eu conheço seu Sensei, Maruta, muito bem. Já que está aqui, por que não treina conosco hoje?”. Quando falei que não tinha trazido nenhum equipamento e que numa próxima vez gostaria muito de treinar, ele disse que um aluno poderia me emprestar todo o equipamento e vestimentas necessários e que eu deveria treinar com eles naquele dia. Eu estava muito, muito contente ao ouvir isso de alguém que considerava quase um deus. Achei que jamais teria outra oportunidade como aquela então treinei com eles.

…..Após o treino, Nakayama Sensei me chamou e perguntou o que mais eu fazia da vida. Quando respondi que era instrutor de Kendo, ele me disse: “você é ainda jovem e isso é perda de tempo. Não gostaria de vir a Tokyo comigo para treinar?” Imediatamente senti um grande impulso para aceitar mas tive que dizer ao Sensei que eu deveria retornar a Fukuoka para pedir autorização a algumas pessoas responsáveis por mim. Pedi seu apoio caso tivesse autorização para ir até Tokyo. Então parti.

…..Voltei para Kagoshima num feriado de inverno em Dezembro e contei toda história para meu avô. Ele me deu sua permissão e me disse “se você realmente quiser ir lá, tem minha benção. Eu te mandarei o dinheiro que precisar. Se é isso que você almeja, agarre a oportunidade.” Eu estava muito feliz. Quando retornei para minha escola em 5 de Janeiro, expliquei toda situação ao chefe e pedi que me dispensasse, embora me avisassem que não seria simples assim, pois não havia dado aviso prévio, mas minha mente já estava em Tokyo e não poderia esperar mais. Pensei em fugir em segredo naquela noite. Saí então de madrugada e andei por 2 horas até a estação de trem carregando meu equipamento de Kendo nos ombros. Então peguei o trem das 7 da manhã e fui para Tokyo. Tudo graças ao Maruta Sensei que me falou a respeito de Nakayama Sensei, para poder se tornar seu aluno.

Sensei atento ao treino

Sr. Yamanaka: soube que quando chegou ao dojo Yushinkan, Gorozo Nakajima e Jun’ichi Haga o testaram, já que o acharam convencido…

Nakakura Sensei: eu era um caipira de Kagoshima e nem mesmo sabia como cumprimentar as pessoas apropriadamente. Além do mais, era um novato lá, mas mesmo assim pedi ao Nakajima para que lutasse uma vez comigo. Ele disse então “eu nunca tinha vista alguém tão convencido!” (risadas). Naqueles dias, eu achava que ninguém poderia me vencer. Eu raramente perdia uma luta e não queria de jeito algum ser derrotado por alguém de Tokyo. Naquela época, o Sr. Haga era muito forte e concordou em praticar comigo, achando que iria me dar uma lição. Foi uma luta violenta. No final, a luta se tornou um vale-tudo. Estávamos determinados a continuar até que um de nós desistisse. Finalmente, o Sr. Nakajima teve que intervir para nos parar (risadas).

…..Se você acreditar que não consegue fazer algo, não conseguirá mesmo. Se estiver determinado a fazer, conseguirá. Eu acredito que a razão pelo qual os mestres de alta graduação são atingidos é que sua determinação de jamais ser atingido não é forte o suficiente. Se você competir como se estivesse numa luta real, você nunca seria golpeado.

…..Alguns anos atrás, Nakajima me disse: “Nakakura, tenho me sentido muito cansado quando treino Kendo.” Eu disse: “não me admira que fique cansado, pela forma com que treina!”. Nakajima não gostou do que ouviu e me perguntou por que eu achava isso. O motivo era esse: ele olhava o oponente de baixo para cima (N.T.: assume-se que este comentário tenha conotação mais psicológica do que de postura física propriamente dita, embora exista a percepção de que seja uma combinação de ambas) . Em outras palavras, estava assumindo uma postura curvada, arqueada.

…..Você ficará cansado se treinar com essa postura, não perceberá o estado mental do seu oponente e o iniciar de suas técnicas. Portanto, no tempo em que você perceber sua investida, já será tarde demais. No Kendo, enquanto você estiver golpeando seu oponente, não se sentirá cansado.

…..Você se sente cansado quando começa a ser golpeado pelo oponente. É isso que enfatizo que você deveria continuar golpeando. Quando se prepara e adota o kamae, deveria contrair seu abdome e olhar para seu oponente como se estivesse controlando a mente dele. Desse modo, você lê a mente dele, o que torna fácil para você golpeá-lo. Foi o que disse para Nakajima. Após o treino, ele veio a mim e disse “lutar pareceu muito mais fácil depois que fiz como mencionou. Às vezes você diz algo útil, não?” Eu lhe respondi “eu tenho agora mais de 70 anos de idade. Você tem que me deixar falar algo útil às vezes.” (risadas).

Uma luta de Nakakura Sensei (à direita no vídeo) disponível no Youtube:

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Uma entrevista curta, falando de Ueshiba Morihei:

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Um minidocumentário sobre Nakakura Sensei, com cenas de seu treinamento:

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Apresentação de Kendo Kata e algumas lutas:

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…..Leia mais sobre Nakakura Sensei no site da Federação Belga de Kendo, em inglês.

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3 comentários sobre “Entrevista: Nakakura Kiyoshi

  1. Olá Carlos,

    As referências pesquisadas estão em inglês, apenas e infelizmente.

    Portanto acredito que essa idade se refere a época da entrevista, sendo que Nakayama Hakudo faleceu em 1958 aos 89 anos. Como não tenho conhecimento em japonês, não pude pesquisar nos sites japoneses sobre Nakakura Sensei, que imagino já ser falecido.

    Obrigado pela visita e buscarei os conteúdos na medida do possível.

  2. A entrevista com Nakakura Sensei é inspiradora, *****. Obrigado por traduzir e compartilhar. Existem certos momentos que fica dificil de entender, acredito que seja ou pelas palavras que ele usa ou pela dificuldade na transcrição do idioma.

    Uma coisa que ficou é em dúvida é: Quantos anos Nakakura Sensei tem?
    Ele tem realmente 78 anos hoje ou tinha 78 em 1987?

    Outra coisa a comentar é o vídeo. Ele realmente luta como diz que se deve fazer: atacar sempre.

    Traga-nos mais boas referencias de pessoas que trilharam um bom caminho, seja no kendo ou em qualquer outra arte marcial ou ainda na vida.

  3. Excelente tradução, eu já havia visto o vídeo do youtube e tinha ficado impressionado, agora entendo a magnitude de Nakakura Kiyoshi !

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