A Regra Não Escrita da Luta

O combate em Kendo deve parecer bastante estranho e pode não estar de acordo com as expectativas de quem nunca assistiu uma luta. Visto por fora, parece um show de pancadas ao som de gritos insanos, e eventualmente um desses golpes é considerado ippon (ponto válido). Por que alguns golpes valem e outros não? Isso pode ser considerado “marcial”?

É necessário compreender o contexto da simulação do combate armado neste ponto. É claro que um golpe de arma cortante, mesmo que com força insuficiente ou mal aplicado certamente causaria sérios ferimentos, ou até mesmo morte. No entanto, tal iniciativa não é considerada válida dentro do escopo do conceito de ARTE marcial: não basta fazer de qualquer jeito, ou com um toque de sorte. É exigida extrema convicção, consciência da oportunidade e execução adequadas, figurando na estrutura do seu movimento um conjunto complexo de conhecimentos teóricos do universo da espada japonesa. Golpear por golpear qualquer pessoa conseguiria fazê-lo. Atacar com ferocidade, mas ainda assim elegância e precisão, somente um kenshi treinado consegue.

Um detalhe que deve ser observado é que, apesar do uso de equipamento de proteção (bogu), o Kendo é uma simulação da luta do samurai sem armadura em um combate real. Por isso, os pontos vitais visados são áreas de ataque clássicas, e possuem mecânica diferenciada em relação a técnicas e estratégias contra um adversário protegido pelo yoroi, a conhecida armadura japonesa. Isso é uma influência direta do período Tokugawa (período Edo, 1603-1868), quando muitas das escolas de espada que originaram o Kendo “moderno” surgiram.

Existem diversas etapas na construção de habilidades físicas e mentais que não podem ser negligenciadas pelo ingressante. Trata-se de um processo de longo prazo, demandando foco e disciplina do novato para assimilar toda movimentação básica e teoria geral. Ao ser promovido e autorizado a usar o bogu, já entra em um novo estágio de aprendizado, onde a aplicação dos conhecimentos anteriores é severamente exigida. Falhas no processo inicial trazem vícios e prejuízos que minam a capacidade de combater do espadachim, reforçando o compromisso do estudo dos fundamentos, mesmo estando em níveis mais altos.

Assim, fica mais claro observar a quantidade de exigências desta modalidade, que não se limita a movimentos de força e impacto contra um oponente. A mentalidade em como treinar é a base para um caminho correto dentro da arte marcial. Por isso, ao combater, seja em eventos ou no treino do dojo, existem regras não escritas de como conduzir sua experiência de luta.

Em Kendo, não existe golpear a esmo. Cada tentativa ofensiva deve ser considerada como definitiva, e assim construída seguindo uma estrutura onde o espadachim deve pressionar seu adversário através do ki e da intenção de atacar, quebrando a concentração e a postura dele. Neste momento, o golpe é disparado com total desapego pela sua própria segurança, visando o máximo dano (isso é chamado sutemi). Só assim aumentam suas chances de um ataque fatal e considerado correto para os padrões da arte.

Apesar de ser um item por vezes negativado pelos assim autoproclamados “críticos do combate real”, o Kendo possui competições e seu praticante é incentivado a participar devido a variáveis difíceis de simular dentro do dojo. A tensão e ansiedade em enfrentar um adversário desconhecido cujas habilidades nada se sabe é um imenso aprendizado. Neste momento, dificilmente o kenshi menos experiente consegue dar o seu melhor, sendo altamente prejudicado por tais emoções, principalmente pelo receio de ser golpeado e perder. Ali, perder equivale a ser morto, uma vez que é eliminado do evento.

Isto causa sim um distúrbio na maneira de lutar e é aqui talvez um dos pontos mais importantes o estudo de uma arte marcial. Como o combate tem um formato extremamente dinâmico (e é idêntico em parâmetros dentro do dojo e no campeonato), por vezes é possível burlar, ou na melhor das hipóteses, dobrar um pouco algumas noções em seus procedimentos. Mas não se engane: a maneira como o kenshi se porta ali é um reflexo direto de sua personalidade. Por isso, os “jeitinhos” (na falta de uma palavra melhor) acontecem, mas devem ser evitados para a manutenção de uma atitude digna em quadra, e principalmente, fora dela.

Existem distorções leves na aplicação de golpes, e também em como evitá-los. Usar apenas de agilidade e velocidade para ludibriar o adversário ao invés de pressioná-lo e desestabilizar sua postura – tanto física quanto mental – pode ser considerado um Kendo de baixa qualidade, ou de principiantes que ainda estão estudando o processo de luta. Se valer apenas de técnicas de fintas talvez seja considerado deselegante se este for o único recurso do lutador. Apesar de válidas como técnica de combate, foge dos princípios fundamentais que tornam a espada japonesa algo diferenciado. Com a idade, perdemos velocidade e agilidade. Mas treinando a luta corretamente, de forma mais mental que física, os mestres conseguem induzir e prever os momentos em que atacamos, e por isso nos contra-atacam com facilidade. Adquirir esta capacidade no futuro, e não vitórias amparadas por capacidades meramente físicas é um dos grandes objetivos do caminho.

Como dito de forma inexorável em diversos textos aqui, é o kenshi quem decide que tipo de Kendo ele quer ter, e desta maneira, qual o grau de envolvimento com a experiência marcial ele consegue extrair. O refinamento da atitude modifica toda a estrutura perceptiva que é claramente evidenciada não somente na forma de lutar, bem como nas atitudes do cotidiano. Isso é parte fundamental do estudo do Budo, algo que somente aqueles que abraçam o caminho correto conseguem se envolver, denotando uma integração cultural e marcial muito mais profunda do que meramente treinar “técnicas de espada”.

___________________

N.P.P.

O texto exprime um conceito idealizado na forma de lutar, e que soa arrogante quando diz que é a forma “correta” de proceder com o combate – principalmente quando estamos nos estágios iniciais ou intermediários. Certamente que tais aproximações não são ideias do autor, figurando como parte do processo de etiqueta e conhecimento do Kendo conforme é transmitido e comentado por diversos professores de alto nível. Assim busca-se o refinamento das habilidades. Entretanto, muito cuidado pois existem diferenças entre abordagens de treino em academia, exame e campeonato, e isso deve ser observado junto a seu instrutor.

___________________

O que achou da matéria? Sua opinião é importante para o crescimento deste trabalho. Caso tenha dúvidas ou queira conversar sobre o assunto, envie um e-mail para: blog.espiritomarcial@gmail.com

Postado em 31 de Outubro de 2018.

Deixe um comentário