Kendo Kata: conceitos #01

…..O Kendo Kata, conforme já foi abordado anteriormente, é uma espécie de “matriz” dos conceitos técnicos e filosóficos desta arte marcial. Sua trajetória vem de centenas de anos, de épocas de guerra, da sistematização da luta e da inspiração de seus orgulhosos criadores.

…..A criação do Kendo Kata é creditada aos esforços da força de polícia metropolitana de Tokyo, criada logo após a revolução Meiji, e também da associação Butokuden. Embora naquela época a modernização do Japão fosse a prioridade, a prática e o ensino das artes marciais tradicionais ganhou força após inúmeros oficiais demonstrarem sua eficiência em levantes revoltosos que ainda se manifestavam contra o novo modelo governamental do país (o filme O Último Samurai tenta retratar este cenário).

…..Assim, ao final do século XIX, um grupo de notáveis mestres, representantes de diversas escolas tradicionais da espada foram contatados para desenvolver um sistema unificado e padronizado, e após tantas análises, reuniões e comissões, em 1912 foi estabelecido o Dai Nippon Teikoku Kendo Kata, contendo 10 formas, sendo 7 para espada longa e 3 para espada curta:

…..Porém, pouco antes da compilação de 1912, os 3 primeiros kata desenvolvidos são destacados como formas de grande importância na transmissão de certos conhecimentos, tanto que foram aplicados no currículo escolar de educação física da época, no treinamento do Kendo. São genericamente chamados de Ippon-me, Nihon-me e Sanbon-me, literalmente “Primeiro”, “Segundo” e “Terceiro”. Algumas fontes citam nomes aos kata, que explicariam um pouco da essência da técnica mas é difícil confirmar esta informação. Hoje, o conjunto é conhecido por Nippon Kendo Kata.

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Ippon-me:

…..Após a execução de etapas da etiqueta padrão do treinamento – reverências e cumprimentos (conhecidas como reigi), ambos os praticantes se estabelecem a uma distância pré-determinada para assumirem posturas específicas e realizar apenas uma técnica de ataque, seguida de uma de contra-ataque a cada kata. Inicialmente, é preciso explanar que existe uma dinâmica própria e espiritual que deve seguir neste tipo de treinamento. O atacante, chamado de uchidachi, representa essencialmente o papel de “professor”. Ele executará o golpe que permitirá ao colega, chamado de shidachi contra-atacar, assumindo o papel de “aluno”, demonstrando a melhor técnica possível em agradecimento ao professor, que ofereceu gentilmente sua técnica e seu corpo como alvo para que o aluno tivesse a oportunidade de praticar. É importante relembrar que no Kendo Kata a espada (de madeira ou metal) não toca em hipótese alguma o corpo do parceiro de treino, sendo que os golpes devem parar a poucos centímetros do alvo especificado. Ainda assim, é uma prática considerada muito segura.

…..Mas retornando aos praticantes em posição: ao se distanciarem apropriadamente, ambos estarão em chuudan-no-kamae, postura com a espada voltada para frente. Tal postura é considerada neutra, equilibrada, um meio termo entre ataque passivo e defesa ativa, pois um inimigo que avançar em sua direção corre o risco de ser estocado na garganta caso o praticante mantiver esta postura, sem necessariamente ter a intenção de atacar. Isso por si só demonstra possíveis colocações “filosóficas”, típicas dos orientais, em fazer comparações e parábolas entre um elemento postural para luta e atitudes mentais, posicionamentos espirituais e analogias diversas. Vem daí o costume de chamar chuudan-no-kamae de “postura da água”, pois ela é flexível, adaptável tanto ao ataque como a defesa.

Ishizuka Sensei explica ao aluno o chuudan-no-kamae.

…..No caso do jodan-no-kamae, é constantemente associado ao fogo, pois esse é o espírito em que se deve combater ao adotar essa postura, considerada bastante agressiva. O fato se dá essencialmente pela grande quantidade de “brechas” que a postura apresenta: ambos os antebraços, ambos os flancos e garganta estão expostos ao ataque adversário. Não resta então alternativa a não ser tomar a iniciativa, atacando ferozmente, intimidando e neutralizando as ações do oponente.

Morote Hidari Jodan-no-kamae e suas aberturas.

…..O desempenhar das ações só ocorre quando o uchidachi (o professor) inicia sua movimentação. Aqui também cabe uma observação muito importante: qualquer ação ocorre através da percepção da iniciativa. Seja no movimento ofensivo para o ataque, ou nas demais formalidades, o shidachi (aluno) só poderá efetuar alguma ação realizando uma leitura precisa do uchidachi, quase que antecipando a movimentação deste. Do contrário, deverá se manter imóvel, física e mentalmente. Esta é uma parte valorosa do treinamento, amplamente aplicável em luta, pois dessa forma é treinada a percepção das intenções do adversário momentos antes deste tomar alguma atitude ou ação.

…..O Ippon-me se inicia quando o uchidachi assume a postura morote hidari-jodan, levantando a espada acima da cabeça com as duas mãos e avançando um passo com o pé esquerdo, mantendo-o a frente. Gira a cintura aproximadamente 15 graus para a direita e a ponta espada fica inclinada de 20 a 30 graus, pendendo também para a direita.

…..O shidachi, ao perceber a intenção do uchidachi em assumir sua postura, deverá responder levantando sua espada na postura morote migi-jodan, que consiste basicamente em elevar a espada acima da cabeça com as duas mãos, mantendo a lâmina na linha central do corpo. Em nenhuma das posturas a ponta da espada aponta diretamente para cima, devendo estar levemente direcionada para trás.

…..Como este artigo não é uma revisão técnica do Kata, não entrarei em maiores detalhes dessa natureza. Mas como é tradicional das artes orientais, tudo que é criado é mais do que parece, se houver uma leitura mais atenta aos aspectos constituintes do todo. Observa-se inicialmente que a partir de um estado de neutralidade, houve uma iniciativa ofensiva da parte do uchidachi ao levantar sua espada contra o shidachi. A natureza do conflito começa essencialmente quando há um posicionamento agressivo de alguma das partes, obrigando a outra a se armar, mesmo em conflitos não-declarados (e a história prova isso). Em outras palavras: ao agir com intenção agressiva, esta é facilmente detectável pelos outros; e dependendo das características pessoais (o famoso “sangue quente”) daquele que é direcionado a intenção, o resultado é bastante previsível. Seguindo este raciocínio, é importante saber como, onde, quando e contra quem direcionar o espírito ofensivo. No caso, se o uchidachi tivesse se mantido neutro, o shidachi não reagiria. Simples ação e reação.

…..Ao adotar as posturas superioras da espada, ambos caminham 3 passos um em direção ao outro para se encararem, face a face, a uma distância determinada. Então o uchidachi avança um passo com a perna direita, realizando simultaneamente um corte com sua espada em direção a cabeça do shidachi, emitindo o kiaiYA”. Neste momento, existe a observação de um conceito muito valioso nas artes japonesas e aqui desempenhado pelo uchidachi chamado sutemi (捨て身). Trata-se de uma espécie de sentimento de abandono à própria vida no momento de atacar, para que este seja realizado sem um mínimo de hesitação, causando o máximo de dano possível. Envolve tanto coragem de realizar algo arriscado quanto o desapego pelo risco. O sutemi se manifesta quando só existe uma única oportunidade de se fazer algo e somos impulsionados pelo instinto a realizar tal tarefa. Pode ser interpretado como um momento de “tudo ou nada”. E embora o sutemi esteja relacionado ao ensino do ippon-me, é necessário que seja um “sentimento” incorporado em todos os golpes do Kendo durante uma luta. O combate ideal é aquele que possui apenas um golpe, um lance de movimentos e apenas uma “morte”, entendida como “objetivo alcançado”. Porém, no ideal do Budo, o objetivo não é a morte, mas sim a vida. Matar é uma idéia condenável em quase todas as esferas religiosas. Sobreviver passa ser a meta justificável.

…..Seguindo o ideal de “leitura” das intenções do adversário, o shidachi percebe o momento em que o uchidachi efetua o ataque e momentos antes da espada atingir sua cabeça, desliza um pequeno passo para trás, evitando o golpe por questão de centímetros. Quando a espada passa, deixando de oferecer perigo, o shidachi avança um pequeno passo e golpeia em direção a cabeça do uchidachi, emitindo o kiaiTO”. Observe os detalhes no vídeo abaixo:

…..A técnica deste kata de chama Men-Nuki-Men, que consiste em mover o alvo da espada do adversário de sua trajetória com um movimento inesperado e contra-atacar oportunamente na brecha aberta pelo ataque. É um dos waza (técnica) mais eficientes em combates do Kendo.

…..O kata então vai para sua etapa final, onde o shidachi realiza o zanshin (uma espécie de procedimento, tanto mental quanto físico, de estar alerta a possíveis reações do inimigo, estando pronto para antecipá-las), efetuando a intimidação do adversário. Retornam então para a postura chuudan-no-kamae, abaixam as espadas em sinal de neutralidade de intenções, recuando então 5 passos curtos até onde estavam onde iniciaram o kata. Lá, assumem novamente a postura da água e se preparam para o segundo embate.

…..É notório observar que o ippon-me é um conto sobre a natureza do conflito, envolvendo os conceitos de ação e reação dentro da esfera marcial. Desde o momento da iniciativa ofensiva, da percepção e da providência tomada, ilustra o pensamento humano naquele que pode ser considerado como um “cenário da pior situação” que pode acontecer quando um indivíduo que se assumiu como agressor demonstra a intenção do ataque e, caso medidas cabíveis não sejam tomadas, você estará morto. E aquele que iniciou a contenda acaba morto ao final da história, vítima do carma negativo gerado por suas próprias ações.

Continua em #Kendo Kata: conceitos #02

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5 comentários sobre “Kendo Kata: conceitos #01

  1. Muito bom este texto sobre o Ippon Me! Hoje eu estava treinando exatamente este kata e fui instruído exatamente no conceito do Sutemi… Depois que soube disso, o Kata ganhou muito mais fluidez!

    Parabéns pelo texto!

  2. Olá Renato,

    Obrigado pela visita! Sem duvida, o sutemi é parte essencial do aprendizado não só de técnicas, mas é possível aplicá-lo em contextos reais do dia a dia. É como no poker, onde existe a manobra do “all in”, vamos com tudo, quando decidimos firmemente realizar algo. Estudar para uma prova, vestibular, concurso, uma conquista. Tem que ser com tudo, tem que ser de coração!

    Eu acho que faltou comentar mais aplicações de conceitos do kata em cenários do cotidiano, sem falar em mais detalhes implícitos na movimentação, no olhar, na postura, enfim, coisas que minha atual graduação não percebe. Mas enfim, não deixou de ser um ensaio para o aprendizado.

    Aguarde a continuação do texto para o Nihon-me e Sanbon-me.

    Até!

  3. Não se preocupe, você está fazendo um excelente trabalho! Espero que a gente tenha a oportunidade de conversar no campeonato deste ano!

    De qualquer forma, estarei aguardando os novos posts!

  4. Mais uma vez parabéns *****. Ótimo texto.
    É uma pena que fiz muito pouco o treino de Kata. Mas sempre achei muito bom.
    ***** posso imprimir o texto? Gostaria de guardar numa pasta sobre Kendo que tenho.
    Um abraço.

    • Olá Toni,

      Obrigado pela visita. Claro que pode imprimir, mas tenha cuidado ao divulgar pois não se trata de uma “análise” feita por um Sensei ou especialista. É importante mencionar este fato pois muito do que este blog contém é feito de observações pessoais, que não necessariamente tem a ver com o conteúdo verdadeiro e correto. Tudo bem?

      Até os próximos treinos!

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