Porrada!

Quando se busca por informações sobre a espada japonesa na internet é muito comum se deparar com textos de sites e blogs de supostos entendedores do assunto (como este por exemplo) que tratam de filosofias e elevados princípios morais, mas que banalizam tais conceitos em um repetitivo e cansativo discurso de autoajuda.

Esse comportamento em parte separa dois grupos distintos de praticantes de artes marciais: os ‘filósofos nerds’, preocupados em debater de forma incessante e bitolada os aspectos de desenvolvimento comportamental, e os ‘porradeiros’, ansiosos em discutir aplicações práticas de seu treinamento no dito combate real para reforçar sua autoestima masculina adolescente.

Ele uniu conhecimento e prática.

Ele uniu conhecimento e prática.

Artes como o Aikido, Kyudo, Taichichuan, Iaido, por serem naturalmente introspectivas se alinham com os primeiros, pois no geral são caracterizados pela ausência de duelos corporais agressivos ou disputas de força.

Lutas de contato físico intenso como Karate, Muay Thai, Taekwondo, MMA se encaixam com o segundo grupo. Facetas nem sempre complementares, em especial, nas discussões na internet onde cada facção promove seu modo de pensar como o melhor caminho para as artes marciais. Mas na realidade, não é claro se isso é reflexo da natureza da arte em si ou o comportamento do praticante.

Uma das principais críticas dos porradeiros é que os filósofos discursam demais sem talvez saberem de fato lutar; e para estes, os desafetos querem simplesmente aprender técnicas de luta para aplicar em campeonatos ou na rua, sem perspectiva de amadurecimento pessoal. Como opinião, ambas vertentes tem alguma razão: o conhecimento teórico deve estar intimamente ligado com a aplicação. Um não se resolve sem o outro mas percebo que talvez seja necessário uma ordem para as coisas.

O conhecimento de mestres ao alcance.

O conhecimento de mestres ao alcance.

Não faltam frases de efeito para direcionar isso: querer matar a fome apenas lendo o cardápio. Antes de falar treine duas vezes. Tijolo não reage. Talhar a pedra, polir o espelho. Artes marciais vão muito além de luta, mas nunca aquém.

E o Kendo, é discurso ou porrada? E por que o suposto equilíbrio seria importante?

Historicamente, a revitalização e transformações das artes de combate tradicionais japonesas no início do século XX recodificaram práticas assassinas de guerra em uma possibilidade de autodisciplina. Após a derrota na 2ª Guerra, demorou anos para que organizações com força nacional reestruturassem o então Budo como via marcial que hoje conhecemos.

Nas décadas seguintes, tivemos uma difusão muito grande dos estilos de luta orientais no mundo, em especial, compartilhando certas semelhanças institucionais. No entanto, aspectos da mensagem do aprimoramento pessoal infelizmente podem atrair pessoas mal intencionadas, meros vendedores de algum pseudo-estilo, com palavras sobre honra, coragem, espírito e esforço, mas que talvez tenha uma origem obscura como lutador ou inaptidão técnica.

Daí, a distância entre fala e capacidade só aumenta, o que gera atritos entre as facções listadas.

Tolos prepotentes...

Tolos prepotentes…

Em Kendo, existe uma série de valores que são oriundos de sua própria definição: moldar/disciplinar o caráter humano através dos princípios da espada japonesa, o que abre a possibilidade de falatórios inconvenientemente idealistas, e em última análise, até arrogantes. Conversar com um praticante pode levar muito mais a descrições filosóficas da arte do que a discussão da técnica em si.

Se você leu a matéria #Como é o treino de Kendo, pôde perceber que a abordagem envolvida é puramente prática, com repetições orientadas no ‘fazer’, acompanhados da observação cuidadosa do instrutor. Suburi, kirikaeshi e uchikomi são exercícios extensivos que trabalham a percepção do golpear, repetidos às centenas em uma única sessão de treinamento. E mesmo dentro das abordagens teóricas, tornar o golpe ‘mais rápido, mais forte e violento’ é incentivado de maneira progressiva, constando no próprio material teórico de apoio ao exame escrito de graduação!

Virtudes do kirikaeshi

Então, é preciso certo discernimento e discrição ao expor sua arte marcial a comentários pouco fundamentados e com argumentos rasos e inexperientes. Muitos ridicularizam o uso da espada de bambu por ser um material flexível, mas ignoram a intensidade seu impacto: qualquer um que assista uma luta de graduados ficaria impressionado com a força dos golpes e a agressividade dos ataques.

Forte rivalidade: Guarda Imperial vs Polícia

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Seria o Kendo um meio termo entre filosofia e aplicação? Sim, se levarmos em conta como seus princípios contagiam o espírito do praticante mais sério. Não porque é inexistente um modelo de aplicação realista das habilidades do kendoka – ninguém vai andar com espada na rua, muito menos correr o risco de usar uma e ser severamente processado por agressão ou até tentativa de assassinato.

No geral, a intenção e a mensagem é o amálgama das experiências físicas e reflexivas. Embora não existam ‘discussões filosóficas’ ao final de um treino de Kendo, seus praticantes buscam aliar seu modo de ser na maneira como lutam: insegurança e timidez por exemplo, transparecem muito facilmente nos movimentos do iniciante. Ansiedade provoca ataques prematuros. Estratégias defensivas ou ofensivas dependem de como o lutador interpreta os princípios da espada – ter iniciativa ou cortesia? Autoconfiança surge gradativamente, tanto na técnica quanto no espírito do praticante.

Essa união permite de fato assimilar a marcialidade, e buscar relações entre um golpe e sua mentalidade pessoal. Elementos que separam Do e Jutsu, mas que os fundem em uma única percepção: conhecimento, única e somente através do árduo aperfeiçoamento, desabrochando em crescimento e proficiência. Treinar Kendo é participar de um legado de transformação, cuja técnica da espada assassina agora modifica a forma de pensar das pessoas. Então, mesmo quando não está treinando, estará treinando.

Sem deixar de ser técnica. Sem deixar de ser caminho.

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NPP: gostaria de agradecer e ao mesmo tempo pedir desculpas aos meus colegas nerds e porradeiros, em especial, pela nostalgia da comunidade Artes Marciais do Orkut. As ideias lá debatidas muito acrescentaram em minha formação, tanto bons quanto maus exemplos. Independente da facção, suas designações não representam um modo pejorativo de estereotipar pessoas, mas uma colocação oportuna para caracterizar perfis distintos. De certa maneira, este texto critica ambos os lados, pela incapacidade de perceber como o discurso oposicionista pode contribuir com sua evolução. Mas visto recentes exemplos na opinião política do brasileiro, parece-me que certas coisas não vão mesmo mudar… tão cedo.

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Segue um interessante vídeo onde mostra uma rara academia que treina o Kendo próximo ao que era antes da 2ª Guerra:

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Postado em 3 de Novembro de 2014.

4 comentários sobre “Porrada!

  1. Excelente artigo. Como sempre, o ideal está no balanço entre estes dois. Agora me chamou a atenção neste último vídeo o porque do JuJutsu ( e seus descendentes Jiu Jitsu e Judo) não ser tanto baseado no Atemi como o Karate: como dar soco e chute em um cara com Bogu? :)

    • Olá André,

      Infelizmente sou leigo em Judo e Aikido e não saberia responder apropriadamente sua dúvida.

      No entanto, creio que não se dá socos e chutes em alguém com armadura para machucar, no máximo talvez para desequilibrar e então aplicar alguma técnica de imobilização, estrangulamento ou quebrar algum membro! Imagino que esta é uma origem possível e até lógica das artes ‘suaves’.

      Obrigado pela visita!

  2. “para reforçar sua autoestima masculina adolescente”
    Ri alto. Gente, isso é verdade =D
    Agora esse vídeo da Rara academia…. Parecia treinamento para derrubar sequoias gigantes ou arrancar mens, não kendo. Haga-ka Kendo. Como sabe quem ganhou?
    Na minha opinião é visualmente feio, fora o fato que eles vão pisando em tudo pelo caminho. Pareceu mais uma desforra de raiva, nem parecia ter defesa. Mas como foi dito, era o antigo kendo.
    O novo parece melhor (pra mim né =D)

    • Olá Tai,

      Obrigado pelo comentário. Desculpe se pareceu impróprio mas é como honestamente vejo. Muitas pessoas atrás de auto-afirmação, e inflação de ego… acho que isso está longe da proposta de Arte Marcial.

      Sobre a academia Haga, eles mantém um tipo de Kendo que supostamente segue o estilo anterior à 2ª Guerra. Já vi esse jeito de combater em outros vídeos da época, e não saberia dizer exatamente o que prioriza. Talvez seja uma forma de pressionar e abater um adversário pela insistência, foco um pouco diferente do teórico “um corte uma morte” que consideramos hoje como ippon. Ainda assim, é interessante para discussão.

      Se não me engano, uma das formas de vencer seria tirar à força o men adversário!

      Também prefiro o Kendo de hoje, apesar de ter minhas dúvidas quanto aplicação em lutas reais. :)

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