A Relação Senpai-Kohai

Senpai e Kohai são tratamentos japoneses ligados à hierarquia de pessoas dentro de um sistema ou organização. De certa forma, assumem em português vagamente a ideia de “veterano” e “novato”, e é um vínculo que se estende até mesmo fora de uma instituição de trabalho ou estudo.

A relação funciona através de uma interdependência e obrigações mútuas, onde o senpai assume temporariamente as responsabilidades ao estilo ‘irmão mais velho’ e tem o dever de orientar o kohai em certas instâncias durante sua vida escolar ou até profissional. Tarefas simples como guiar os menores ao atravessar uma rua, ou ajudar a organizar um evento são exemplos comuns, e em especial, adquirir responsabilidade ao se tornar um modelo (em amplos sentidos) para os kohai. Estes por usa vez realizam pequenos trabalhos como limpeza ou manutenções diversas e desenvolvem obediência e disciplina por seguir uma liderança.

Sol Nascente (1993): Kohai e Senpai.

Sol Nascente (1993): Kohai e Senpai.

Analisando a etimologia chinesa dos ideogramas, Senpai (先辈) é relacionado ao conceito de “antepassado”, aquele que conheceu de antemão determinado sistema e nele está inserido, conhecendo as regras e procedimentos. Kohai (後輩) está conectado à ideia de “posteridade”, sendo o responsável pela futura transmissão do conhecimento desse sistema quando assumir o manto de senpai, renovando a tradição.

Pela nossa falta de familiaridade com o contexto, às vezes não fica claro o que é obrigação de cada parte e certos exageros podem ser cometidos. Como sempre, este texto não tem a pretensão de fazer afirmações definitivas, apenas observações, passíveis de discussão.

Em artes marciais, o termo ani-deshi representa a posição de ‘aluno-irmão (mais velho), discípulo do mesmo mestre’, que colabora, mas apenas secundariamente no aprendizado do mais jovem. Por isso é importante ressaltar que o Sensei é a instância suprema dentro do dojo, e somente a ele caberá os ensinamentos, avaliações e eventuais críticas.

kendo senpai

No entanto, escapando das rigorosas definições japonesas (e fora daquele país), entendemos que os colegas veteranos possam ser mais acessíveis no momento do treino para dicas rápidas e pequenos toques do que o Sensei, pois, geralmente, ao consultá-lo, para-se o treino para as observações, o que pode incomodar os demais por sua causa.

O kohai, quando ingressante, deve abraçar gradualmente seu interesse pelo Kendo, fazendo descobertas passo a passo. A prática das artes marciais compõe um cenário como um quebra-cabeça: aqueles que estão há mais tempo conseguem visualizar o panorama mais completo. Cada dia de treino é uma pequenina peça, cuja montagem se dá pelas beiradas e só após certo período é que se começa a vislumbrar a imagem central – e entender certos contextos.

Por isso, é incômodo que um senpai, muitas vezes responsável por uma sessão de treino, queira apresentar seu estilo ou sua visão do Kendo, e não a do Sensei, o que torna as coisas problemáticas para o iniciante. Na ânsia de tornar o treino interessante e variado, é possível desalinhar a ordem natural do aprendizado, que deve consistir apenas nos conceitos de base, o #kihon. E como o kohai não sabe disso, apenas concordará em receber a instrução, sem questionamentos.

kihonpractice

Aliás, este é um momento sensível do treino. Historicamente, e por razões culturais, nunca se questiona um superior hierárquico. Apenas acena-se com a cabeça e responde “ hai ” em voz alta. Este é o comportamento esperado do kohai em Kendo mas já testemunhei em muitos casos alunos que queriam discutir aspectos do treino com o veterano ou até mesmo questionando o Sensei, mas de maneira inocente, porém se esquecendo do fato de estar em solo de treinamento marcial, onde não existe a desobediência ou questionamento. Então, aparece o dilema da obediência cega ou usar de seu bom senso.

Em Kendo, é relativamente raro alguém se machucar nos treinamentos, mas essa atitude de respeito e obediência totais é preocupante em artes marciais duvidosas, e instrutores picaretas que obrigam os alunos a atividades físicas perigosas e não orientadas por um especialista da área (mas NÃO estou endossando a iniciativa do CREF, apenas demonstrando preocupação com charlatães e pessoas sem experiência). Se lembra do filme onde o ator chuta um coqueiro até derrubá-lo, acreditando ser parte de uma provação ‘árdua’ e ‘máscula’? Ficção prejudicial, que contamina a mente dos jovens e alienados com proezas irreais e perigosas.

chutando_arvore

Por isso, não se deveria expor ao mesmo tipo de treinamento alguém que ainda não está acostumado fisicamente com as peculiaridades do Kendo, a fim de evitar lesões e equivalentes. Os veteranos já tem seus corpos acostumados com as exigências físicas desta arte e podem realizar treinamentos mais intensos e severos.

Para o senpai, as observações são talvez mais exigentes, a partir do momento que eles se tornam um referencial na academia. Sua presença pode inspirar diretamente o kohai, que em várias ocasiões poderá copiar sua técnica ou atitude, por isso é de grande relevância a reflexão do senpai como um modelo, e se policiar cuidadosamente para consolidar sua postura e comportamento (principalmente dentro de um contexto politicamente correto). A influência de pessoas tidas como referências não pode ser ignorada e deve ser observada com atenção. No Kendo, mesmo quando falamos em praticantes de altíssimo nível, ainda vemos pessoas batendo a ponta do shinai no chão após um golpe ou fazendo movimentos de zanshin que estão em desacordo com o que se prega. O exemplo que vem de cima prolifera pela cadeia muito facilmente.

Após a técnica men-kaeshi-do.

Após a técnica men-kaeshi-do.

Na parte técnica, o senpai já completou um ciclo de aprendizado, e deve se esforçar para captar o melhor possível os detalhes físicos e mecânicos dos movimentos. Isso é obrigação. Caso entenda ou aprenda errado, sem dúvida irá repassar isso ao kohai, seja por instrução verbal ou mimetização, provocando um grande dano. Perde-se bastante tempo tentando consertar maus hábitos adquiridos nos primeiros anos de treinamento.

Curiosamente, percebo casos em que o senpai julga o iniciante, que não mantém o mesmo nível de compromisso e interesse que ele no Kendo, com cobranças de esforço no treino ou assiduidade. Porque cobrar algo de alguém que ainda não amadureceu o sentimento e está se descobrindo? Não se deve intimar o iniciante com exigências que estão além da capacidade dele de retorno. Essa falta de sensibilidade o desmotiva e até pode ser considerada um tipo de assédio. Então, seria ideal concentrar-se apenas em dicas e toques esporádicos. Cabe ao Sensei, e somente a ele, a instrução.

E não é raro o caso de veteranos que molestam novatos, até mesmo no Japão, onde a ilusão de poder, ou mesmo de responsabilidade os fazem achar que devem extrair resultados dos kohai a qualquer custo. É inocente achar que esse tipo de situação não ocorra e não é esse o propósito da espada. ‘Resultado’ é o final de um processo longo e cansativo, que parte da iniciativa de cada um, se doando para o coletivo. E ele nunca será garantido. Por isso, também cabe ao senpai ajudar criar uma atmosfera positiva e motivada no ambiente, sem broncas e focado na união do grupo.

tepegolafora

Ser kohai é como ser um filho em busca de reconhecimento. Por isso, trabalho árduo e sincero, força de vontade e atitude proativa contribuem muito para o processo de amadurecimento. Ainda mais porque um dia, será ele que ajudará a comandar uma nova geração.

Ser senpai é uma oportunidade de aprender a ser uma pessoa melhor, prestando orientação e exemplo. Se você tem filhos, entende como isso é relevante. E quando eles crescerem, será a vez deles comandar o mundo. Baseados na sua ajuda e talvez, sem ser mandados a chutar coqueiros.

Senpai e Kohai

Kohai serve senpai no Biirudô :)

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Postado em 3 de Maio de 2015.

10 comentários sobre “A Relação Senpai-Kohai

  1. Bravo *****!! Mais um ótimo artigo, parece muito com nossa história por aqui. :)

    • Olá Márcio,

      Espero que seja pelas partes boas! Acho que é uma oportunidade de amadurecimento muito grande estar em ambos lados, é preciso vivenciar todas as faces do treinamento para o entendimento pleno. De kohai a senpai a sensei, é uma trilha em que cada parte é uma jornada única no aprendizado técnico e principalmente humano! :)

      Obrigado pelo constante apoio e pela visita!

  2. Mais um excelente texto! Congratulo o autor pela sua lucidez e sensibilidade. Retiro daqui um aforisma sábio: ” ‘Resultado’ é o final de um processo longo e cansativo, que parte da iniciativa de cada um, se doando para o coletivo. E ele nunca será garantido.” Tão pertinente para nossas vidas “adultas”, nas quais primamos por resultados e garantias de toda ordem e em todos os aspectos. E garantias são expectativas ilusórias de quem condiciona a vida sem respeitar seus movimentos naturais e hábeis. Creio que não importa o quanto se dedique. Não é producente manter o foco na destinação de um trabalho, mas sim na feitura e realização dele, e através dele procurar o aperfeiçoamento e a correção contínuas. Nosso Sifu sempre frisa a entrega sincera e adequada ao treino e o conceito ubíquo de kung fu e, isso, adequadamente reforçado por nosso sihing. Obrigada por mais um texto.

    • Olá Carla,

      Muito obrigado pelas suas considerações! Reside aí reflexão sobre como guiar nossas decisões pelo simulacro da arte marcial. Não é tão místico nem esotérico como se pensa, obrigado por deixar isso claro. Os fins não precisam justificar os meios em todo tipo de empreitada… e por sorte, aprendemos a respeitar o tempo de cada um em manifestar o melhor de sua capacidade. :)

  3. Mais um ótimo texto. Eu complemento dizendo que as vezes ser sempai é também ser meio psicólogo hahaha. Vc tem q entender a pessoa e as suas inseguranças e defeitos pra conseguir dar os melhores conselhos e ajudar essa pessoa a ser mais centrada e continuar treinando.

    • Olá Helton,

      Sim, acho que faz parte. Mas no fundo, todos somos senpai e kohai simultaneamente e devemos tirar nossas lições disso. Obrigado pela visita e pelo comentário!

  4. Gostei muito do texto, estou buscando compreender cada vez mais sobre o kendo, com paciência (do meu sensei, porque eu certamente dou trabalho) e dedicação vou aprendendo, obrigada.

  5. Ótimo texto. Comeceia praticar kendo a pouco tempo e tenho um sensei exímio, muito bom, pacencioso e experiente. Aos poucos estou melhorando. Mesmo que ainda esqueça de manter a postura ou finalizar os golpes nunca perco a vontade de ir mais uma vez treinar.

    • Olá Vitor,

      Obrigado pelo elogio! O Sensei e os Senpai são grande parte da jornada. O ambiente de treino depende muito deles.

      Com o tempo você se acostuma com os movimentos, no início é bem estranho mesmo. Mas nada que força de vontade e disciplina não resolvam :)

      Obrigado pela visita!

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