Tachigiri

Tachigiri (立切) é o termo que determina uma prática antiga nas escolas de esgrima japonesa, onde um lutador se oferecia ou era escolhido para um desafio de lutas contínuas contra todos os demais membros do dojo.

Escolas como a do famoso Tesshu Yamaoka (1836-1888), fundador do estilo Itto-Shoden Muto-Ryu realizavam etapas diferentes para o tachigiri: lutas contínuas, isto é, uma em sequência da outra, sem intervalos, de 6 horas seguidas, ou de três e até cinco dias (logicamente com pausas durante a noite). Era permitido pouquíssimo tempo de descanso a cada ciclo de combate, onde era possível se reidratar e comer um caldo de arroz muito leve para se sustentar. Ao final, além da óbvia exaustão física e psicológica, efeitos desagradáveis diversos como perda de sono, dores musculares intensas e urina vermelha beirando à tonalidade do sangue eram comuns!

tachigiri_shiai

É uma interessante alusão à seriedade com que se treina atualmente. Historicamente, era uma árdua provação para um espadachim, que corria risco de vida devido ao esforço absurdo para completar a tarefa, altamente desaconselhável por qualquer profissional médico ou da educação física hoje. No entanto, tentava simular as condições extremas e ininterruptas de uma batalha campal, onde o corpo era maltratado e a mente chegava ao seu limite.

Visto isso, talvez seja tolice dar demasiado crédito à pessoas que querem marcializar demais as práticas da espada atualmente. Esse compromisso é impossível para o tipo de vida que temos hoje, e com tantas responsabilidades. Priorizar um treinamento com este grau de severidade só serviria para elevar egos desocupados. Ao invés disso, talvez tratar a arte como cultura e extrair os benefícios do aperfeiçoamento me parece mais lógico e proveitoso. Ou não?

O tachigiri existe no Kendo, de forma muito mais segura que nos tempos de Yamaoka, mas sem deixar de ser uma provação extremamente cansativa. Pode durar três ou quatro horas, em modelo muito parecido com o antigo, enfrentado entre 30, 40 pessoas. Os escolhidos usam uma fita branca (tasuki) nas costas, similares às da competição (porém muito mais longa), com escritos e mensagens motivacionais.

Tudo é programado com devida antecedência: é apresentada uma tabela onde constam todos os desafiantes, e o placar de cada luta que ficará registrado. As regras oficiais da competição estão valendo. Ao final, em grande esgotamento, luta-se contra o Sensei.

Colocado desta forma, o tachigiri é um exercício muito interessante de resistência e força de vontade, que se torna uma etapa importante no aprendizado do kenshi. Nos dias de hoje é possível se ter apenas um mero esboço do que eram as condições dos guerreiros profissionais, por isso, é preciso cuidado ao marcializar demais a prática de lutas orientais. Sem contexto de aplicação real, não é errado dizer que existe uma esportização. Por isso, creio que estamos falando de um legado cultural, mais do que um meio de combate.

Raro tachigiri (talvez informal) em Nito-ryu

Isso abre a discussão sobre o compromisso do kenshi com seu treinamento, sua paixão e o quanto é considerado seguro treinar Kendo. Em muitos momentos queremos nos esforçar ao máximo, quase no limite do corpo mas sempre fica aquele sentimento de que, caso se machuque, possa prejudicar sua carreira. Não necessariamente em termos de competição, mas em capacidade pessoal: é possível sofrer lesões sérias a ponto de ter de abandonar a prática. E sem falar nos efeitos pós-treino: cansaço, esgotamento e desidratação severos, e ter de enfrentar o trabalho e estar com a família nestas condições.

Por isso, já ouvi dizer que hoje não se treina tão desapegadamente como há algumas décadas, onde era uma questão de virilidade e obrigação, em atmosfera mais marcial e realmente pensando no uso da espada com corte. Críticos das artes tradicionais alegam a impossibilidade de se criar um modelo real de combate que não o esportivo. Os céticos aos esportes de combate implicam com a falta de “marcialidade” (o que quer que isso seja) e a priorização de pontos. Talvez o tachigiri seja uma resposta para ambos.

Mini-doc sobre o tachigiri. Lutador em jodan!

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Postado em 11 de Novembro de 2015.

2 comentários sobre “Tachigiri

  1. Ótimo texto {concordo especialmente com: “Esse compromisso é impossível para o tipo de vida que temos hoje, e com tantas responsabilidades. Priorizar um treinamento com este grau de severidade só serviria para elevar egos desocupados. Ao invés disso, talvez tratar a arte como cultura e extrair os benefícios do aperfeiçoamento me parece mais lógico e proveitoso. Ou não?”}

    • Olá Inácio,

      Há muitas formas de ver a situação. Se não treinar até os limites da capacidade física e mental, talvez não esteja treinando corretamente o verdadeiro Kendo. Mesmo assim, saber dosar sempre além do imediatamente possível é um exercício de crescimento. Não aprenderemos do dia para noite. O corpo não se aprimorará em pouco tempo. Os limites devem ser gradualmente superados. Se hoje consigo 10, amanhã minha meta será 11… e assim por diante.

      Obrigado pela visita! :)

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